Coluna de Flavio Gordon, publicada semanalmente pela Gazeta do Povo:
“Em todo homem dorme um profeta e, quando ele acorda, há um pouco
mais de mal no mundo...” (Emil Cioran, Breviário de Decomposição)
Dos rincões mais inóspitos e (ainda) selvagens da internet, acaba de
nascer o termo que, concebido originalmente como piada, decerto entrará
para a história como caracterização cientificamente precisa do tipo
sociológico contemporâneo por excelência: o pandeminion. Quando a
pandemia do coronavírus tiver passado, restará ainda ele, o pandeminion –
essa criatura obstinada, inconsolável, plangente, em eterna vigilância
contra um eventual retorno do assim chamado “velho normal”. O bardo do
pandeminion é Lulu Santos. Nada do que foi será de novo do jeito que já
foi um dia é o seu salmo preferido. A.C. e D.C. (antes e depois do
corona), o modo como passou a separar as fases profana e sagrada de sua
biografia.
Escrevo “quando a pandemia tiver passado” e logo me arrependo. Pois é
possível mesmo que, caso triunfe o pandeminion – ou seja, caso não se
lhe retire o diabo do megafone –, a pandemia não acabe jamais. A
Covid-19 é a cenoura de burro do pandeminion, aquilo que, preso em sua
fronte, e sempre à sua frente, o faz progredir indefinidamente. Há o
ciclo do vírus e há o ciclo do fanático. O primeiro mede-se em meses; o
segundo, em décadas.
Fanático, sim. Pois o pandeminion enquadra-se perfeitamente na
fenomenologia de Emil Cioran. Em “Genealogia do Fanatismo”, que compõe o
seu Breviário de Decomposição (1949), o escritor romeno descreve o
fanatismo como a “tara capital que dá ao homem o gosto pela eficácia,
pela profecia e pelo terror”, uma “lepra lírica que contamina as almas,
as submete, as tritura ou as exalta”.
Testemunhei a súbita conversão de amigos e conhecidos em
pandeminions. Surpreendi-me com os seus aplausos às ações truculentas de
PMs e guardas municipais contra banhistas insubmissos e ímpios
praceiros
Lepra lírica, sim. Pois o pandeminion é, antes de tudo, um
sentimentalista. E também um kitsch, no sentido de Milan Kundera: “O
kitsch faz com que duas lágrimas escorram em rápida sucessão. A primeira
lágrima diz: como é bom ver crianças correndo pela grama! A segunda
lágrima diz: como é bom comover-se, junto com toda a humanidade, por
crianças correndo pela grama!”.
Como não poderia deixar de ser, esse fanático, sentimentalista e
kitsch é necessariamente um prosélito, alguém incapaz de refrear o
impulso de invadir o espaço alheio munido com sua pretensa revelação e,
sobretudo, com o seu pavor, que distribui generosamente por onde passa,
como se fora uma dádiva divina. Diz Cioran: “Em um espírito ardente
encontramos o animal de rapina disfarçado; não poderíamos defender-nos
demasiado das garras de um profeta... Quando elevar a voz, seja em nome
do céu, da cidade ou de outros pretextos, afaste-se dele: sátiro de
nossa solidão, não perdoa que vivamos aquém de suas verdades e de seus
arrebatamentos; quer fazer-nos compartilhar de sua histeria, de seu bem,
impô-la a nós e desfigurar-nos”.
Na condição de fanático – possuído, portanto, por esse “espírito
ardente” –, o pandeminion não deve ser confundido com outras espécies da
fauna social surgida nos últimos meses. Não se deve confundi-lo,
sobretudo, com o surfista de pandemia – o espírito cínico e oportunista
para quem a crise atual foi apenas um excelente meio de colher
dividendos materiais ou simbólicos, pecuniários ou políticos.
Não, o pandeminion não é um cínico. É coisa muito pior: um pedagogo
de adultos. Não é um corrupto. É, muito pelo contrário, incorruptível – o
que significa que é indemovível. O corrupto dorme e, por vezes, tem
bons sonhos. O fanático, jamais. Se, e quando, dorme, não sonha:
elucubra. A corrupção é impressionista; o fanatismo, expressionista. Os
vícios dos corruptos, velhacos e farsantes, diz ainda Cioran, são “mil
vezes mais suportáveis que os estragos provocados pelo despotismo dos
princípios; porque todos os males da vida provêm de uma ‘concepção da
vida’”.
O pandeminion recebeu o coronavírus como Parousia. Dali em diante, no
intervalo entre dois episódios de uma série do Netflix, um furor ético
imprevisto brotou-lhe da alma, inspirado pela certeza de que o joio e o
trigo seriam, enfim, separados, e de que cabia a ele – e a mais ninguém –
o papel de ceifeiro.
Vi com os meus próprios olhos o surgimento dessa escatologia hipster.
Testemunhei a súbita conversão de amigos e conhecidos em pandeminions.
Surpreendi-me com os seus aplausos – antes reservados ao pôr-do-sol no
Arpoador – às ações truculentas de PMs e guardas municipais contra
banhistas insubmissos e ímpios praceiros. Assombrei-me ao notá-lo
baixando gravemente o seu escudo facial – qual um cruzado, na iminência
da batalha, o visor de sua armadura. E sair por aí, transido, de
“espada” em punho (um borrifador de álcool 70), à cata dos hereges sem
máscara e sem pânico.
Desde o início do surto mundial da Peste Vermelha, tenho dito que o
coronavírus despertou em muita gente o seu tirano interior, e que,
agora, qualquer síndico de cortiço, gerente de bordel e prefeito de
província vê a si mesmo como a encarnação de Stalin ou de Mao Tse-tung.
Cioran previu esse estado de coisas e, com 70 anos de antecedência,
descreveu o pandemônio dos pandeminions: “Olhe à sua volta: por toda
parte larvas que pregam: cada instituição traduz uma missão; as
prefeituras têm seu absoluto como os templos: a administração, com seus
regulamentos – metafísica para uso de macacos... Todos se esforçam por
remediar a vida de todos; aspiram a isso até os mendigos, inclusive os
incuráveis: as calçadas do mundo e os hospitais transbordam de
reformadores. A ânsia de tornar-se fonte de acontecimentos atua sobre
cada um como uma desordem mental ou uma maldição intencional. A
sociedade é um inferno de salvadores!”.
No calendário litúrgico particular do pandeminion, passam-se os dias
de forma idêntica. O início do Jornal Nacional apanha-o invariavelmente
genuflexo diante do televisor. Verte as primeiras lágrimas já no “boa
noite” de William Bonner. Benze-se a cada audição da palavra “Covid”.
Contrito, prepara-se para aclamar o evangelho: a contagem diária de
mortos. Meditabundo, sorve com ânsia de náufrago a homilia de Renata
Vasconcellos. Professa o credo na ciência e em seu único filho, Atila
Iamarino. Pede proteção contra as tentações da hidroxicloroquina.
Comunga com o biscoito da sorte que veio no chinês do aplicativo de
entregas. Reza a oração de Santo Henrique Mandetta de la Scienza,
Scienza, Scienza. Ergue-se. Pela quinta vez no dia, asperge lisoforme na
soleira da porta. Benze-se com álcool gel. Física e emocionalmente
exaurido (está sem diarista desde março), joga-se na cama feito um saco
de batatas. Sem jamais conseguir terminar de ver a Live do Felipe Neto
com o Luís Roberto Barroso, entra no Instagram, posta a hashtag “fique
em casa” (a última do dia) e, desligando o celular, finalmente adormece.
De máscara. Da Hello Kitty.
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