A
Organização Mundial da Saúde (OMS) divulgou em 2021 um documento1 sobre
a necessidade urgente de se estabelecer um programa para o
gerenciamento ideal do sangue do paciente em todo o mundo. No entanto, a
implementação dessas diretrizes ainda não acontece de forma abrangente
no sistema de saúde brasileiro.
Conhecido pela sigla PBM (do inglês, Patient Blood Management),
esse programa envolve a combinação de técnicas, medicamentos e
equipamentos, organizados em 3 pilares de ação, sendo no 1º pilar o
tratamento de anemias e coagulopatias no período pré-operatório; no 2º.
pilar, o uso de estratégias para se diminuir ou recuperar a perda de
sangue no período intraoperatório; e, no 3º pilar, o conceito de
tolerância à anemia por meio do uso das reservas fisiológicas do
paciente no período pós-operatório, tomando todas as decisões centradas
especificamente o caso de cada indivíduo.
Neste
contexto, no segundo pilar tem-se o uso de estratégias e equipamentos
que recuperam o sangue do próprio paciente durante a cirurgia, o que é
chamado de autotransfusão, técnica em que o sangue do paciente que seria
perdido durante a cirurgia é recuperado, passando por um processo de
filtração, concentração e lavagem, quando são retiradas
quaisquer impurezas, e então reinfundido no paciente. Embora a técnica
não seja nova e apresente um significativo nível de aceitação entre os
médicos devido a sua segurança, a maioria da população desconhece a
possibilidade de usar seu próprio sangue durante a realização de
cirurgias com potencial de sangramento, como as cardíacas e ortopédicas,
entre outras.
A
exceção seriam as Testemunhas de Jeová, que, por conta de suas
convicções religiosas, não aceitam ser submetidas à transfusão de sangue
alogênico (doado por terceiros), tendo, portanto, a autotransfusão como
uma das opções viáveis para realização de cirurgias. Essas pessoas
foram favorecidas por uma recente decisão do Supremo Tribunal Federal
(STF) que garante o direito de recusar procedimentos médicos que
envolvam transfusão de sangue. A medida, aprovada em setembro, também
estabelece que o Estado tem a obrigação de oferecer as opções
terapêuticas disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS), mesmo se for
necessário recorrer a estabelecimentos em outras localidades.
A
discussão sobre a segurança de procedimentos cirúrgicos e uso da
transfusão de sangue, assim como de transplantes, também veio à tona com
o caso dos seis pacientes contaminados com o vírus HIV, no Rio de
Janeiro, após receberem transplantes de rins, fígado, coração e córnea. O
erro foi atribuído ao laboratório privado que analisou as amostras e
indicou que não eram reagentes para o vírus da doença. O Ministério da
Saúde solicitou a interdição cautelar do laboratório e ordenou a
retestagem do material dos doadores.
Apesar
dessa situação ter sido causada por um erro, procedimentos cirúrgicos
em geral apresentam riscos se não feitos de maneira criteriosa,
resguardando a segurança e a saúde do indivíduo. Particularmente,
destacam-se as cirurgias que envolvem a perda do sangue do paciente e
requerem transfusão sanguínea.
Segurança transfusional e hematológica
A
adoção das diretrizes do PBM na Medicina diminui em muito a chance de
um paciente receber transfusão de sangue. Isso é algo positivo,
considerando que a transfusão convencional oferece riscos de
contaminação e/ou a rejeição imunológica do corpo ao sangue recebido,
além de efeitos inflamatórios e imunomodulatórios que aumentam a chance
de infecções, do tempo de internação e até de mortalidade.
“A
transfusão de sangue, por representar um transplante de células de uma
pessoa para outra, tem significativos efeitos adversos associados. No
uso da autotransfusão, o paciente recebe de volta o seu próprio sangue e
evita as reações adversas consequentes da transfusão de sangue da outra
pessoa. Com a implementação dos 3 pilares do PBM – preparar o paciente
antes da cirurgia, evitar a perda ou recuperar o sangue durante o
procedimento cirúrgico e adotar estratégias pós-operatórias para o bom
uso das reservas fisiológicas do paciente para o manejo da anemia e do
sangramento, há uma mudança em toda a linha de cuidado do paciente
cirúrgico, para que ele esteja melhor preparado e seja melhor cuidado
neste período, evitando-se o uso desnecessário de transfusões de
sangue”, explica Isabel Cristina Céspedes, docente do Departamento de
Morfologia e Genética da Escola Paulista de Medicina da Unifesp e uma
das responsáveis pela implementação do PBM no Hospital São Paulo,
Hospital Universitário da Unifesp.
“Nesse
sentido, é importante destacar também a vantajosa relação
custo-benefício da autotransfusão para o sistema de saúde, assim como os
aspectos legais que garantem a sua utilização em nosso país, através da
Lei 10.205/2001, art. 3º, III (transfusão autóloga), Portaria de
Consolidação n.º 5/2017 do Ministério da Saúde, artigos 7.º e 222 do
Anexo IV, e da Portaria 346 do Ministério da Saúde (materiais para
autotransfusão)”, complementa a especialista.
Cenários mundial e brasileiro
O
conceito de PBM foi aprovado em 2010 pela Assembleia Mundial da Saúde e
foi foco, em 2011, do Fórum Global para a Segurança do Sangue,
promovido pela Organização Mundial da Saúde2. Em 2017, o PBM foi
recomendado como padrão de atendimento pela Comissão Europeia3 e, em
2019, tornou-se o padrão de manejo dos pacientes em todos os hospitais
da Austrália, país que, com isso, registrou uma redução de 28% na
mortalidade, 31% de redução em infarto agudo do miocárdio e acidente
vascular cerebral, 15% de redução no tempo de internação hospitalar e
21% de redução nas taxas de infecção, junto com aproximadamente 100
milhões de dólares australianos de economia em custos diretos e
indiretos em 6 anos1.
Já
no Canadá, onde o PBM foi implementado com sucesso há 20 anos, reduções
significativas no tempo de internação e taxas de infecção foram
observadas em cirurgias cardíacas e ortopédicas, economizando cerca de
50 milhões de dólares canadenses por ano4.
Contudo,
a iniciativa de implementar o PBM ainda é incipiente nos hospitais
brasileiros, que ainda dependem, na maioria das vezes, de bolsas de
sangue. Além dos maiores riscos para o paciente, outro agravante é a
crescente escassez de bolsas de sangue no sistema de saúde, que se
tornará cada vez mais evidente com o envelhecimento populacional.
“Temos
visto o aumento da demanda por transfusões de sangue. Por exemplo,
pelos cálculos do Ministério da Saúde, no início do ano, 1.081.8935
pessoas estavam à espera da realização de uma cirurgia pelo Sistema
Único de Saúde (SUS), e parte dessas cirurgias tem sido adiada pela
falta de sangue”, pontua Céspedes. “Do ponto de vista científico, e
analisando o contexto da saúde no nosso país, fica claro que a
implementação do PBM pelo Sistema Único de Saúde (SUS) traria vantagens
muito significativas. Isto porque o PBM representa uma melhora na linha
de cuidado do paciente, que traz vantagens clínicas, na segurança do
paciente, e também financeiras, agindo em favor de seus usuários e do
sistema como um todo”.
Uma
importante dificuldade é que o gerenciamento do sangue do paciente
ainda não está nas diretrizes curriculares do Ministério da Educação
para o curso de Medicina. Por isso, a docente da Unifesp ressalta a
importância da instauração de uma ampla conscientização e capacitação de
profissionais da saúde a partir das instituições de formação, como as
universidades, atuando no ensino de graduação, residências médica e
multiprofissional, e cursos de capacitação. A partir disso, também seria
necessário que lideranças hospitalares e da gestão pública dessem
início a um amplo processo de fomento à implementação desse programa.
Outra dificuldade relevante é que, apesar de sua custo-efetividade,
apenas a minoria dos hospitais no Brasil possui máquinas de
autotransfusão.
“Se
o PBM traz mais segurança para o paciente e otimiza os recursos
públicos em saúde, é um dever ético que o profissional da saúde busque a
capacitação necessária para a sua mudança de prática para as
estratégias do PBM, e venha a agir de forma ativa na implementação do
programa em seus cenários de prática profissional. O PBM exige ainda uma
atuação interdisciplinar e interprofissional, incluindo especialistas
que abordem o PBM aplicado às diversas áreas, como na hematologia,
anestesiologia, especialidades cirúrgicas, obstetrícia, pediatria,
trauma, terapia intensiva e enfermagem”, ressalta a professora. “Já o
paciente, sendo bem-informado, poderá assim ter condições de argumentar
em favor da sua segurança e autonomia com o profissional da saúde”.
Avanços e próximos passos
Membros do Grupo PBM-HU-UNIFESP,
coordenado por Isabel, e outros especialistas no tema participaram no
mês de novembro de uma reunião da Comissão de Implementação do PBM pela
Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo. “Sensível ao tema do PBM, a
Secretaria de Saúde do Estado de SP, através do Decreto Estadual nº:
68.742/2024 da Coordenadoria Geral de Administração, publicou a
Resolução SS Nº 223, de 19 de setembro de 2024, que ‘institui no âmbito
da Secretaria da Saúde a Comissão Interdisciplinar com o objetivo de
desenvolver e implantar o programa de Gestão do Sangue do Paciente
(PBM), nos equipamentos de saúde públicos do Estado de São Paulo.’ Foi
uma reunião muito produtiva, para o estabelecimento de um cronograma de
trabalho para ações rápidas e eficazes. Cabe destacar e parabenizar esta
iniciativa ímpar do governo do Estado de São Paulo”, conta a docente.
“Além disso, a Coordenação Geral de Sangue e Hemoderivados - CGSH da
SAES do Ministério da Saúde já está trabalhando junto com a Hemorrede,
nas ações necessárias para uma política nacional voltada ao
estabelecimento do PBM.”
A
inclusão do PBM nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) dos cursos
de graduação em Medicina vem sendo analisada pelo Conselho Nacional de
Educação (CNE). O Grupo PBM-HU-UNIFESP
já possui um sistema de capacitação no assunto, que se iniciou com a
inclusão do PBM no curso de graduação em Medicina da Escola Paulista de
Medicina como disciplina eletiva, e um curso de capacitação em PBM,
obrigatório para todos os residentes médicos da Escola Paulista de
Medicina/Hospital Universitário da Unifesp, por meio da Comissão de
Residência Médica (COREME).
Como funciona a autotransfusão?
O processo é realizado por meio de
equipamentos automatizados, como o XTRA da LivaNova, que aspiram o
sangue do campo cirúrgico, recuperam e concentram as hemácias autólogas
(do próprio paciente), componente mais crítico do sangue. Depois disso,
essas hemácias são “lavadas” para eliminar completamente todas
as impurezas e então, a bolsa de sangue autóloga, fresca, totalmente
limpa e completamente segura, é reinfundida no paciente.
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