Em
2022, o Brasil teve uma queda de 2,4% no número de homicídios, chegando
ao menor número da série histórica, iniciada em 2012. Ainda assim, esse
menor número corresponde a assustadores 47.508 assassinatos,
representando uma taxa de homicídios por 100 mil habitantes de 23,4. A
título de comparação, os EUA, que têm uma taxa de homicídios considerada
alta quando comparada com outros países desenvolvidos, registraram 7,8
homicídios por 100 mil habitantes em 2020 (o dado mais recente que
encontrei). O contraste é ainda mais assombroso se pensarmos em taxas
regionais. O estado mais violento em 2022 foi o Amapá, com uma taxa de
50,6, seguido pela Bahia, com 47,1 e o Amazonas (38,8/100 mil).
O
Brasil é um país violento – atestam os números e a sensação de
insegurança, historicamente compartilhada em maior ou menor escala pelos
brasileiros. As razões por trás disso são muitas, mas certamente passam
pelo fato de o Brasil ser um país de dimensões continentais e da
dificuldade em se fiscalizar 17 mil quilômetros de fronteira, além de
ser vizinho de alguns dos maiores produtores de cocaína do mundo – e o
crime organizado é de fato extremamente organizado.
No
entanto, na retórica pseudopacifista de nosso governo, são os cidadãos e
não os traficantes os vilões. São as pistolas legais e não os fuzis das
facções os instrumentos de nosso flagelo. É o desejo de se comprar uma
arma que alimenta uma pretensa “cultura de ódio” e gera violência, e não
as amplas oportunidades facilitadas por uma impunidade que é lendária.
Foi com esse espírito que Lula assinou na última sexta-feira (21/07) um
decreto que, para além de retroceder em mudanças do governo anterior,
torna a compra e posse de arma por civis muito mais restritiva.
Ora,
sempre critiquei o fato de Bolsonaro ter tentado fazer as mudanças
concernentes ao armamento civil por meio de decretos, regulamentando o
Estatuto do Desarmamento, ao invés de por meio de projeto de lei junto
ao Congresso, alterando o próprio Estatuto. Era evidente que os decretos
enfrentariam, como enfrentaram, judicializações e radicais mudanças em
uma eventual troca de governo. Também muito me desagradava a abordagem
demagógica com a qual Bolsonaro sempre encarou o tema, vendendo-o como
uma bandeira de segurança pública. A possibilidade da posse de armas por
civis é uma questão de liberdade individual e direito de propriedade,
não uma proposta de segurança pública — do contrário, o Estado
terceirizaria sua responsabilidade clássica de garantir segurança e
policiamento. O chamado Estatuto do Desarmamento carecia sim de mudanças
(e eu defendia ao menos duas: o fim da necessidade de se comprovar
“efetiva necessidade” e a redução da idade mínima de 25 para no máximo
21 anos) e, se elas tivessem sido propostas ao Congresso e devidamente
debatidas com a sociedade, o governo atual teria menos possibilidades de
fazer o proselitismo que está fazendo em cima disso. O que o governo
Lula tem feito e promete fazer ainda mais é ir além de rever as mudanças
do governo predecessor, tornando a posse de arma por civis ainda mais
restritiva do que era anteriormente e, potencialmente, operar um
completo banimento da posse.
Como
todos devem lembrar, Lula tentou banir as armas de civis por completo
em seu primeiro governo, mas 64% da população se manifestou de forma
contrária em referendo de 2005. Como a vontade popular tem importância
muito circunstancial para esse governo, podemos observar um claro desejo
de, se não possível chegar à proibição em absoluto da posse de armas
por civis, chegar ao limiar disso. Ao comentar o programa de recompras
de armas lançado pelo governo, Flávio Dino é claro ao dizer que, embora
optem “por um caminho progressivo e de persuasão” em um
primeiro momento, não estão descartadas medidas mais ostensivas e
coercitivas no futuro. Já Lula é taxativo em propor o fechamento de
todos os clubes de tiro do país, exceto os destinados ao treinamento de
policiais e militares. Se levarmos em conta que no próprio decreto
assinado por Lula a prática em clubes de tiro é um pré-requisito para
atiradores desportivos, fica muito claro o real desiderato do
presidente.
É
muito fácil para o “governo do amor”, essa nossa “bússola moral”,
cravar em quem tem a ficha criminal zerada a pecha de radical, ou coisa
que o valha, ao passo que fala fino com os criminosos contumazes. Sem
ruborescer, Lula declara: “Não acho que o empresário que tem lugar para praticar tiro seja empresário”.
Mas claro que não, certamente é miliciano, bandido, ou o que queira o
governo do amor. O que dizer então daqueles civis que fazem uso de suas
dependências (clubes de tiro)? Ora, certamente são extremistas. Quem,
senão pessoas más, gostaria de lidar com armas, não é mesmo? Devemos
seguir o conselho do mandatário maior e trocar os livros pelas armas
(dois itens evidentemente excludentes, já que atiradores devem
necessariamente ser analfabetos). Que nos inspiremos na idílica
Venezuela de Maduro, ou na Nicarágua, de Ortega, musas inspiradoras de
nosso chefe de Estado, terras pacíficas onde, é claro, não há grupo
paramilitar ou o próprio governo executando opositores com armas de
fogo. Sobretudo, que sigamos seus exemplos democráticos e viremos a
página do ódio, já que os armamentistas, segundo nos conta nosso Gandhi
tropical, “tentaram preparar um golpe” (na certa devem ter
esquecido seus arsenais em casa naquele fatídico dia 08 de janeiro, bem
como não se preocuparam em convidar para a festa os demais cidadãos
armados desse Brasil varonil, todos, é claro, necessariamente avessos ao
espírito democrático).
Contemplem
a beleza da estratégia de Dino e Lula: quando, depois de um tempo, as
acachapantes taxas de violência do país seguirem em patamares obscenos
(como têm seguido por anos a fio), chegará a hora de optar pelo caminho
mais ostensivo. Contra o crime organizado? Não, contra o cidadão comum.
“Essa taxa de homicídios não cai, porque o seu Zé gosta de praticar tiro
desportivo nos fins de semana”. “A culpa da violência é obviamente do
38 do seu Pedro”. É uma lógica ridícula? Pois é, mas não é minha;
lembrem que nosso ilustre ministro da Justiça chegou
a elencar o “incentivo ao armamentismo”, ao lado de “internet
desregulada”, “ideologia da morte” e, pasmem, “agrupamentos nazistas e
neonazistas” no leque de coisas que explicariam os atentados em escolas
no país.
Mas,
ainda que de fato não seja uma panaceia, restringir ou mesmo extinguir o
direito de civis terem armas não seria uma ferramenta a mais no combate
ao crime e redução da violência e, portanto, louvável? As políticas do
governo anterior não permitiram, como amplamente noticiado, que mesmo
membros do PCC comprassem armas?
Tratemos
primeiramente do âmbito privado. É possível que alguém que cumpra todos
os requisitos legais, incluindo uma ficha criminal limpa, venha a
cometer um crime com essa arma, algo como disparar intencionalmente
contra o vizinho ou a própria esposa? É claro, isso pode acontecer e
acontece. Pergunto, devemos punir de forma exemplar aqueles que mal uso
fazem da sua liberdade, resguardando aqueles que a usam de forma
responsável, ou punir todos, em antecipação? Quem pensa que a última
resposta é a correta deve também pensar que para lidar com a embriaguez
no volante devemos banir o comércio e consumo de álcool ao invés de
punir os motoristas que dirigem embriagados, isto é, que abusam de sua
liberdade.
Saindo
do âmbito privado e tratando do potencial uso de armas legais por
organizações criminosas, que analisem cada caso com uma lupa e digam se
chegam ou não à conclusão inelutável de que em todos houve uma falha no
processo de autorização e fiscalização, isto é, do próprio Estado. Neste
ponto, alguém pode dizer que, como a fiscalização no Brasil é falha, a
melhor alternativa seria restringir ou impedir a posse de armas por
civis. Conclusão vil. Numa ponta, o Estado falha no fornecimento de
segurança pública; na outra, impede, sob o argumento de que também é
incapaz de fiscalizar com eficiência, aqueles que desejam comprar uma
arma — seja pela sensação de insegurança que sentem, ou algum outro
motivo — de assim fazê-lo.
Fosse
o caso de haver brechas na legislação que de fato permitissem a um
criminoso comprar uma arma legalmente, a missão seria corrigi-las,
pensando no criminoso e não no cidadão comum cumpridor da lei. Uma boa
legislação sobre o armamento civil deve partir de uma posição de
neutralidade, que numa ponta garanta que só possam comprar armas aqueles
que cumpram requisitos mínimos razoáveis, e que na outra garanta a
todos os cidadãos que cumpram tais requisitos o direito de comprar um
certo número de armas e munições. Tal legislação vão visaria a estimular
ou desestimular a compra de armas de civis, restringindo-se à função
clássica do Estado em garantir segurança. É o avesso da política
empreendida por esse governo, que pratica o que podemos chamar de
demagogia desarmamentista. Por óbvio, como fica claro em todo o artigo,
estou falando da posse e não do porte.
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