Nenhum tratamento no SUS pode ter "eficiência cientificamente comprovada" se só é oferecido depois que a pessoa foi cremada. A crônica de Alexandre Soares Silva para a revista Crusoé:
Um
amigo meu teve câncer no ano passado. Fui eu, na verdade, mas gosto de
ser discreto nessas coisas para ir criando uma falsa reputação de
mistério e elegância. Então vamos dizer que foi o meu amigo.
Como
ele não tinha plano de saúde (é um imbecil), e como os gastos de uma
operação complicada seguida de várias sessões de quimioterapia eram o
equivalente a comprar meia bolsa Birkin ou doze chocolates da marca
equatoriana To’ak por mês, ele teve que recorrer ao famoso e tão amado
SUS.
Os
pacientes de câncer, disseram os médicos para o meu amigo, têm que
começar o tratamento quimioterápico no máximo três meses depois do
diagnóstico. Bem. Muitas pessoas falaram para o meu amigo que isso não
era problema e que o SUS é rápido na área de oncologia. Até tem que ser,
eles diziam, porque se o tratamento não começar nesse prazo “o SUS é
multado”, diziam. De modo que ao ouvir isso o meu amigo (repito que é um
imbecil, embora incrivelmente charmoso, lábios carnudos etc.) acreditou
e ficou esperando ser chamado pelo SUS para o início do tratamento.
Três
meses se passaram. Três meses com o meu amigo esperando em casa, o
câncer não sendo tratado, e os amigos do meu amigo no Instagram postando
fotos deles mesmos tomando vacina da Covid com a hashtag #euamooSUS,
#vivaoSUS, #SUSseulindo etc.
Ele
moveu uma ação contra o governo para que o tratamento fosse feito logo;
mas a própria Justiça foi um pouco lenta e no final meu amigo foi para o
sistema privado, pagou pelo tratamento e tudo está bem. Mas acho que,
quando o meu amigo ouve as pessoas elogiando o SUS, sei lá, ele tem lá
as opiniões firmes dele; porque se dependesse do SUS ele estaria agora
dentro de um tupperware, sob a forma de cinzas.
Mas
falo tudo isso a propósito do livro recém-lançado Que Bobagem!
Pseudociências e Outros Absurdos que Não Merecem Ser Levados a Sério
(editora Contexto), de Natalia Pasternak e Carlos Orsi.
Esse
livro tem causado alguma celeuma, ou, para usar palavras ainda mais
velhas, um quiproquó, um brouhaha, na internet e nos jornais, por atacar
homeopatia, acupuntura e psicanálise como “pseudociências” que não
deveriam ser oferecidas pelo SUS.
Como
disse Pasternak, uma divulgadora científica que apareceu numa lista
feita pela BBC das 100 mulheres mais importantes do mundo junto com a
Fat Amy de Pitch Perfect 1, 2 e 3, para a Folha de S.Paulo:
“Pseudociências não são inócuas. Elas são danosas para a sociedade. A
gente tomou o cuidado de não ofender pessoas. A gente discute temas,
assuntos. Mas pessoas morrem por acreditar em bobagens”.
A
paixão nominal de Pasternak e Orsi pela ciência me lembra um grupo que
havia no Facebook chamado “I F… Love Science”. Sempre desconfiei de um
amor que se declara nesses termos. Ou você se concentra em ciência,
porque a ama, ou se concentra no seu amor pela ciência, porque se ama.
Um amor ainda mais afastado da ciência é o seu “f…” amor pela ciência. A
ciência em algum ponto foi deixada lá pra trás pelo seu deslumbre com a
sua autoimagem de pessoa altamente cética e científica e coisa e tal.
Sei
lá eu se acupuntura, por exemplo, tem eficiência cientificamente
comprovada. Ela tem eficiência anedoticamente comprovada, por mim.
Quando eu tinha vinte e dois anos, fiz um tratamento de acupuntura para
me livrar da rinite que tinha desde os onze anos, todas as manhãs sem
falta. No dia seguinte à primeira sessão, a rinite não veio. E continuou
desaparecida durante trinta e poucos anos.
No
entanto, ao discutir com um médico cético-de-internet esta semana, que
saiu empolgado com o livro da Pasternak rindo de medicina alternativa,
ele explicou o sumiço da minha rinite no dia seguinte à primeira sessão
nestes termos: “Rinite faz parte da marcha atópica, a história natural
da doença (tal qual a asma) é melhorar sozinha!”.
Ok,
céticos. Continuo achando mais racional achar que a acupuntura
funcionou no meu caso, no lugar de insistir em acreditar em explicações
que requerem coincidências claramente implausíveis.
Mas
meu ponto nem é esse. Meu ponto é o SUS. Meu ponto é que nenhum
tratamento oferecido pelo SUS pode ter “eficiência cientificamente
comprovada” se só é oferecido depois que a pessoa está cremada e dentro
de um potinho.
Um
tratamento completamente não científico aplicado numa senhorinha
crédula é ainda levemente mais científico que um tratamento científico
aplicado num cadáver.
É
obviamente racional preferir tratar a sua emergência cardíaca só com
psicanálise enquanto você ainda está vivo (“e como essa dor faz você se
sentir?”), a tratá-la com uma operação oito meses depois que você se
mudou para um jazigo.
Acreditem vocês no SUS; eu sóu cético e prefiro acreditar em homeopatia, quando aplicada num paciente que ainda respira.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
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