Da minha perspectiva, a campanha do pix foi o último prego na reputação de Bolsonaro. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Em
sete de setembro de 2021, Bolsonaro superou Getúlio Vargas ao liderar a
maior manifestação de massa da História do Brasil. O Eixo Monumental,
cujo gigantismo diminui a presença humana viu-se pela primeira vez
abarrotado de gente — feito que nem o Papa João Paulo II, um papa
popular, lograra nos tempos em que o Brasil era mais católico. E logo
depois, no dia nove, assinou uma cartinha pedindo desculpas àquele que,
no ato, ele admitia ser a maior autoridade do país: o ministro do STF
indicado pelo presidente predileto dos liberais, e que pedira
desfiliação do PSDB para se habilitar ao cargo. Um líder de massas que
pede desculpas assim unge a real autoridade do país. Ensina aos
liderados quem manda. Entrega o Brasil à juristocracia ocidental que
agora atende, sozinha, pelo nome de "instituições democráticas".
Isto
deveria bastar para queimar o líder perante os seus liderados. Em vez
disso, porém, uma expressiva parcela agora se dedica a mandar pix e a
ficar fazendo espetáculos de autocomiseração. Pensar no futuro do país,
que é bom, nada. Bacana é se excitar com a ideia de martírio, ver-se
como "judeu" na Alemanha Nazista. (Como se a ancestralidade judaica, por
meio da qual os nazistas determinavam quem era judeu a despeito do
credo, fosse uma sina adotada livremente pelas suas vítimas, como o
bolsonarismo.) Quantos bolsonaristas foram executados pelo regime? Não
importa: o bom-senso foi comprar Rivotril e nunca mais voltou.
Essa
disposição se explica, em parte, por algum problema emocional. Faz
tempo que notei o fetiche da esquerda por martírio na esquerda que se
identifica com o combate ao regime militar. Lembro-me de, ainda em algum
dos mandatos consecutivos do PT, ter visto perto da reitoria da UFBA
uma pichação assim: "Abaixo a ditadura!" Para mim, estava claro que o
pichador anônimo sentia nostalgia do que não viveu, e gostaria que o
país caísse numa ditadura de direita para satisfazer suas paixões
mórbidas. E de fato, o fenômeno Bolsonaro foi uma bênção para o
narcisista de esquerda, que podia ficar pinçando declarações
irresponsáveis (por exemplo: "Vamos fuzilar a petralhada toda aqui do
Acre!") para provar que o Fim está próximo. E mais: para ganhar as
eleições, o PT sempre esconde esses doidos narcisistas, que são sempre
muito ideológicos, porque eles queimam o filme. Um belo dia, numa rede
social, resolvi com um ex-prisioneiro do regime militar que a indústria
erótica deveria lançar um "porão do DOPS", cheio de fardados, para
satisfazer as fantasias dos esquerdistas mais histriônicos. O
ex-prisioneiro riu da piada, mas um ativista de sofá, que era criança na
época da Repressão, ficou mortalmente ofendido e se dedicou a atacar a
minha pessoa e a minha carreira acadêmica. Pois bem: hoje eu sugiro que
as escritoras de soft-porn façam uma imitação de 50 Tons de Cinza
protagonizada pelo dono de uma calva reluzente.
Mas
as semelhanças entre os histriônicos da direita e da esquerda param
nessa estranha concupiscência masoquista. No caldo cultural da nova
direita estão o neopentecostalismo e o olavismo. Comecemos por este.
Além
de arguto crítico cultural, exímio polemista e pensador, Olavo de
Carvalho foi líder de seita. Antes de se tornar pensador público, ele
integrou seitas gnósticas e levou sua experiência para a vida. O
resultado dessa dupla e contraditória condição — de homem de letras e
líder de seita — era a inadmissibilidade de críticas. Todo homem de
letras deve ser criticado (é parte natural da atividade), mas todo
crítico de Olavo era, para seus seguidores, um burro ou um canalha.
Chamar os adversários de desonestos tornou-se rotina; e crítica era
"ataque". Ele antecipou a prática dos identitários de desqualificar a
crítica como "ataque"; a diferença é que estes classificam o ataque:
"ataque racista" (vide Itamar Assunção), "ataque homofóbico" etc. Os
olavetes, mesmo se declarando católicos, colocam Olavo acima do Papa.
Inclusive criticar o Papa era hobby de Olavo pelo menos desde quando o
Papa era Bento XVI.
Mas
se o Papa, para os católicos, só é infalível ex cathedra, Olavo, para
os olavetes, é infalível sempre, até em tuítes. E, como bom líder de
seita, falava uma coisa e o seu oposto, apostando na boa vontade dos
seguidores para que não apontassem contradições. Assim, quando se quer
criticar o liberalismo, prova-se que Olavo "tem razão" com uma célebre
postagem escatológica em que ofende os liberais. Mas o mesmo Olavo
criticava (com argumentos, em vez de simplesmente ofender) a Doutrina
Social da Igreja por não aderir ao liberalismo. Em pleno avanço do ESG e
do WEF, Olavo insistia em apresentar os "comunistas" do Foro de São
Paulo como a maior ameaça ao Brasil, mesmo que há anos já estivesse
ciente dos problemas do "metacapitalismo" global. É como se Olavo
tivesse uma coleção de relógios quebrados em casa. Cabe ao leitor ser
"honesto" e escolher o relógio certo conforme a hora para dizer que ele
"tem razão".
No
caso do bolsonarismo pós-2022, a tese de Olavo sobre a "cereja do bolo"
virou tábua de salvação para concluir que Bolsonaro não foi um péssimo
líder. A Presidência da República, insistia Olavo, era apenas a cereja
do bolo. Não adiantaria a direita chegar à presidência sem antes ter
dominado a cultura e aparelhado a máquina. Bolsonaro estaria destinado
ao fracasso; logo, em 2023 os olavetes dizem mais uma vez que Olavo tem
razão, e os bolsonaristas — que tanto ansiaram, em vão, por um golpe
militar — agora aderem ao olavismo. Isto por dois motivos: primeiro,
absolve Bolsonaro; segundo, dá vazão à raiva contra os militares.
Acontece, porém, que Olavo teve a tese da cereja do bolo e, ao mesmo tempo, a tese de "Ivan, o Terrível". Disse ele em postagem de 25 de março de 2019:
"O
mecanismo político mais eficiente e quase infalível já registrado na
História – por exemplo, na origem do reino português ou no triunfo de
Ivan, o Terrível – é a aliança do governante com a massa popular para
esmagar os poderes intermediários corruptos e aproveitadores. Deus
queira que o Bolsonaro entenda ser essa a sua grande oportunidade."
Posso
portanto dizer que Olavo "tem razão", e que a tese da cereja do bolo é
falsa, ao menos no caso de um presidente tão popular quanto ele.
Mas,
como eu ia dizendo, o bolsonarismo pós-22 vai se agarrar à tese da
cereja do bolo. Bolsonaro não tem culpa nenhuma de nada. É, como disse
Lula de si próprio, um homem sem pecados. Quiçá o Filho de Deus, que
veio a ser quase imolado com uma facada por nós, brasileiros. Aí os
fiéis da Igreja Bolsonarista dos Últimos Dias podem ficar tratando
Bolsonaro como um mártir vivo, que veio à política para encenar uma
Paixão e... Ganhar pix.
Da
minha perspectiva, a campanha do pix foi o último prego na reputação de
Bolsonaro. Quem doa normalmente usa um argumento liberal lacrador para
justificar e reclamar das críticas: "É meu dinheiro, dou para quem
quiser e não é crime." Do mesmo jeito, as pessoas se tatuam todas se
quiserem; caem bêbadas se quiserem etc. Só não peçam que achemos bonito,
nem diga que não podemos criticar. Em princípio, tudo o que é social se
presta a críticas. Salvo em casos proibidos pelo STF, nestes tempos
excepcionais que vivemos.
A
maneira como a vaquinha foi feita é vergonhosa. A chave pix do
ex-presidente começou a circular de forma "espontânea", com a vaga
alegação de que era uma campanha para Bolsonaro pagar "multas". Não
informava qual o valor, nem de quais multas se tratava. Como é possível
terceiros darem a sua chave pix, você começar a receber um monte de
dinheiro no seu CPF e não tomar a dianteira para dar explicações, ou
pelo menos agradecer? (Ele agradeceu depois de o COAF
vazar os dados.) Tudo isso é para que não se diga que Bolsonaro não
pediu dinheiro? Pois antes pedisse de peito aberto; do jeito que está,
parece aquelas empregadas de antigamente que quebravam as coisas e
diziam: "Não fui eu, foi a minha mão." Nem para pedir dinheiro Bolsonaro
se responsabiliza.
Sobre
o vazamento do COAF: os bolsonaristas choram muito porque que são
judeus na Alemanha Nazista e porque Bolsonaro não dominou a máquina.
Logo, o vazamento não é totalmente inesperado. Logo, a máquina tem agora
uma formidável lista de "judeus". Mas Bolsonaro não tem culpa nenhuma,
porque ele não pediu pix, só recebeu.
Não faz muito tempo que escrevi um artigo intitulado “Sou de direita, me dê dinheiro!”,
no qual argumento que a nova direita replica o ethos dos pastores
trambiqueiros. Não imaginava que Bolsonaro viria a assumir (ou melhor,
assumiriam por ele) um apostolado e ficar pedindo (ou melhor, só
recebendo) pix. Mas é o que aconteceu. Resta esperar que surja alguma
outra liderança para este pais, realmente disposta a enfrentar as
oligarquias transacionais.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi

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