BLOG ORLANDO TAMBOSI
O tempo é quase sempre seco e pede uma cervejinha, uma bermudinha, uma camisetinha regata, um chinelo de dedo. A crônica de Orlando Tosetto para a revista Crusoé:
Ao
contrário do amigo que me lê, eu nunca estive em Brasília. Mas, por
favor, não se ofenda com a insinuação de que você, amigo, frequenta
aquele lugar: digo isso com candura, porque também existem, acredite,
razões inocentes para se visitar a capital federal. Digamos que você
goste das obras do Niemeyer, por exemplo, ou que ache lindo o plano
piloto (é estranho, eu sei, mas pode ser). Ou que aprecie flanar numa
urbe sem esquinas (muito, muito estranho, mas também pode ser). Ou
queira ver in loco um jogo do seu time, digamos, o Taguatinga (isso é
bem menos estranho do que as alternativas anteriores). Ou, Deus nos
ampare, queira provar a renomada culinária local (hum). Ou, fazer o
quê?, aprecie os ares. São razões boas, aceito todas. Só não se ofenda,
por favor.
Em
todo caso, eu menti: já estive sim em Brasília. Foi em 1997, à noite,
esperando uma conexão para Belém do Pará naquele aeroporto redondo que
eles têm lá. Em 1997, o amigo talvez se lembre, reinava ainda FHC, a
segunda (a primeira foi o Collor) bête noire do PT, o segundo monstro
maligno que opunha seus maus bofes e sentimentos ruins à onda de amor,
justiça social, bondade e picanha do PT. A terceira bête foi o Temer, na
época em que nós aprendemos que, para o PT, a serventia de um
vice-presidente não petista é apenas impedir que um certo ponto do
espaço seja preenchido com luz e ar: se ele fizer qualquer coisa além
disso, essa qualquer coisa se chama golpe (lembre-se disso, chuchu – se é
que o amigo me permite a ousadia de tratá-lo por chuchu). E agora
estamos no fim dos tempos da quarta bête, essa que, por missão dada,
está em vias de ser caçada.
Mas,
como dizem lá pros lados do Jardim Ângela, tergiverso, tergiverso. O
que eu queria dizer é o seguinte: nunca estive do lado de fora do
aeroporto de Brasília, mas sei de fontes fidedignas que a cidade é meio
chata. Não tem esquinas, dizem, do que aliás eu duvido: até um prédio,
se for quadrado, tem esquinas. Mas Brasília parece que não tem. Será
redonda? Ou arqueada? Também, juram os habituês, não é cidade flanável,
não é hospitaleira ao caminhante sem rumo: tudo parece perto, mas fica
sempre muito longe. E há nela aquele terrenão baldio imenso que atende
pelo nome de Praça dos Três Poderes (peraí: serão três mesmo? Não
estamos exagerando, não?) e que parece estar apenas à espera de uma
construtora que levante por lá um condomínio de “alto padrão” chamado, à
maneira daqui de São Paulo, Villaggio di Pastrami ou Giardino
d’Abacaccio, com lazer completo e vigilância 24 horas. De mais a mais, a
frequência não é das mais recomendáveis, e o tempo é quase sempre seco e
pede uma cervejinha, uma bermudinha, uma camisetinha regata, um chinelo
de dedo: o espírito de Brasília é meio brega.
Brega
ou coisa pior. Já em 1960, o comunista Alberto Moravia, de visita,
achou que ela se parecia com “um monte de bifes ensanguentados”, erguida
que foi num lugar em que a natureza, “amarelada e decrépita”, “parece
sofrer por existir”. Viu no Congresso uma “sopeira alucinante feita para
o apetite de um gigante”, e concluiu que é uma cidade cujo gigantismo
“esmaga e aniquila a figura humana”. Por fim, a chamou de “capital
abstrata”, cheia de “solidão metafísica” e preenchida por uma “atmosfera
ditatorial” que, de algum modo, expressava “o sentido de mistério e
desorientação” do homem moderno ante os que o governam.
É
duro esse julgamento? É duro. Confirmo, aceito, acato? De jeito nenhum.
Porque não sou Alberto Moravia, não sou comunista, não sou italiano e,
principalmente, ainda não morri. Portanto, não é bom para mim sair por
aí concordando ou discordando das coisas, como se eu fosse, sei lá,
livre como os árbitros do meu arbítrio. Não: para mim, Brasília fica
sendo só brega mesmo.
Brasília,
portanto, só se aguenta ficando do lado de fora. Você só gosta dela se
não estiver nela, só a curte se puser uns quilômetros de permeio entre a
sua pessoa e o concreto modernista e aviador. Daí que eu nem sonhe em
culpar o excelso senhor presidente por passar tão pouco tempo por lá;
eu, no lugar dele, também passaria o menos tempo que pudesse.
* * *
Consulto
um jurista amigo meu (que, modesto, opta pelo anonimato) o que ele acha
dessa história de “afastamento excepcional de garantias individuais”.
Depois que eu o agarrei (ele teve uma vontade súbita de sair correndo,
sei lá por que), eis a resposta que ele me deu:
—
O termo de interesse dessa expressão é “excepcional”, que aí não é
usado no sentido de “ocasional, de vez em quando, em modo de exceção”,
mas sim no de “ótimo, muito bom, superbacana, excelente, é por aí
mesmo”.
— E isso é bom ou ruim? – perguntei, confuso com o juridiquês.
Mas dessa vez não consegui segurá-lo: ele correu e, pelo que sei, está correndo até agora.
Postado há 3 weeks ago por Orlando Tambosi
Nenhum comentário:
Postar um comentário