MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

sexta-feira, 21 de julho de 2023

O espírito de Brasília é meio brega

 

BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

O tempo é quase sempre seco e pede uma cervejinha, uma bermudinha, uma camisetinha regata, um chinelo de dedo. A crônica de Orlando Tosetto para a revista Crusoé:


Ao contrário do amigo que me lê, eu nunca estive em Brasília. Mas, por favor, não se ofenda com a insinuação de que você, amigo, frequenta aquele lugar: digo isso com candura, porque também existem, acredite, razões inocentes para se visitar a capital federal. Digamos que você goste das obras do Niemeyer, por exemplo, ou que ache lindo o plano piloto (é estranho, eu sei, mas pode ser). Ou que aprecie flanar numa urbe sem esquinas (muito, muito estranho, mas também pode ser). Ou queira ver in loco um jogo do seu time, digamos, o Taguatinga (isso é bem menos estranho do que as alternativas anteriores). Ou, Deus nos ampare, queira provar a renomada culinária local (hum). Ou, fazer o quê?, aprecie os ares. São razões boas, aceito todas. Só não se ofenda, por favor.

Em todo caso, eu menti: já estive sim em Brasília. Foi em 1997, à noite, esperando uma conexão para Belém do Pará naquele aeroporto redondo que eles têm lá. Em 1997, o amigo talvez se lembre, reinava ainda FHC, a segunda (a primeira foi o Collor) bête noire do PT, o segundo monstro maligno que opunha seus maus bofes e sentimentos ruins à onda de amor, justiça social, bondade e picanha do PT. A terceira bête foi o Temer, na época em que nós aprendemos que, para o PT, a serventia de um vice-presidente não petista é apenas impedir que um certo ponto do espaço seja preenchido com luz e ar: se ele fizer qualquer coisa além disso, essa qualquer coisa se chama golpe (lembre-se disso, chuchu – se é que o amigo me permite a ousadia de tratá-lo por chuchu). E agora estamos no fim dos tempos da quarta bête, essa que, por missão dada, está em vias de ser caçada.

Mas, como dizem lá pros lados do Jardim Ângela, tergiverso, tergiverso. O que eu queria dizer é o seguinte: nunca estive do lado de fora do aeroporto de Brasília, mas sei de fontes fidedignas que a cidade é meio chata. Não tem esquinas, dizem, do que aliás eu duvido: até um prédio, se for quadrado, tem esquinas. Mas Brasília parece que não tem. Será redonda? Ou arqueada? Também, juram os habituês, não é cidade flanável, não é hospitaleira ao caminhante sem rumo: tudo parece perto, mas fica sempre muito longe. E há nela aquele terrenão baldio imenso que atende pelo nome de Praça dos Três Poderes (peraí: serão três mesmo? Não estamos exagerando, não?) e que parece estar apenas à espera de uma construtora que levante por lá um condomínio de “alto padrão” chamado, à maneira daqui de São Paulo, Villaggio di Pastrami ou Giardino d’Abacaccio, com lazer completo e vigilância 24 horas. De mais a mais, a frequência não é das mais recomendáveis, e o tempo é quase sempre seco e pede uma cervejinha, uma bermudinha, uma camisetinha regata, um chinelo de dedo: o espírito de Brasília é meio brega.

Brega ou coisa pior. Já em 1960, o comunista Alberto Moravia, de visita, achou que ela se parecia com “um monte de bifes ensanguentados”, erguida que foi num lugar em que a natureza, “amarelada e decrépita”, “parece sofrer por existir”. Viu no Congresso uma “sopeira alucinante feita para o apetite de um gigante”, e concluiu que é uma cidade cujo gigantismo “esmaga e aniquila a figura humana”. Por fim, a chamou de “capital abstrata”, cheia de “solidão metafísica” e preenchida por uma “atmosfera ditatorial” que, de algum modo, expressava “o sentido de mistério e desorientação” do homem moderno ante os que o governam.

É duro esse julgamento? É duro. Confirmo, aceito, acato? De jeito nenhum. Porque não sou Alberto Moravia, não sou comunista, não sou italiano e, principalmente, ainda não morri. Portanto, não é bom para mim sair por aí concordando ou discordando das coisas, como se eu fosse, sei lá, livre como os árbitros do meu arbítrio. Não: para mim, Brasília fica sendo só brega mesmo.

Brasília, portanto, só se aguenta ficando do lado de fora. Você só gosta dela se não estiver nela, só a curte se puser uns quilômetros de permeio entre a sua pessoa e o concreto modernista e aviador. Daí que eu nem sonhe em culpar o excelso senhor presidente por passar tão pouco tempo por lá; eu, no lugar dele, também passaria o menos tempo que pudesse.

* * *

Consulto um jurista amigo meu (que, modesto, opta pelo anonimato) o que ele acha dessa história de “afastamento excepcional de garantias individuais”. Depois que eu o agarrei (ele teve uma vontade súbita de sair correndo, sei lá por que), eis a resposta que ele me deu:

— O termo de interesse dessa expressão é “excepcional”, que aí não é usado no sentido de “ocasional, de vez em quando, em modo de exceção”, mas sim no de “ótimo, muito bom, superbacana, excelente, é por aí mesmo”.

— E isso é bom ou ruim? – perguntei, confuso com o juridiquês.

Mas dessa vez não consegui segurá-lo: ele correu e, pelo que sei, está correndo até agora.
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