O Brasil não está meramente estagnado, mas retrocedendo rumo a uma séria crise, escreve o professor Bolívar Lamounier no Estadão:
Todos
temos o direito de especular sobre o futuro; e podemos fazê-lo como os
adivinhos da antiguidade romana, que examinavam as entranhas de certas
aves, ou como os economistas de hoje em dia, que recorrem a projeções
estatísticas dificilmente compreensíveis por mortais comuns.
Nos
dias que correm, dezenas de estudiosos nos têm alertado para a
gravidade e a ubiquidade das ameaças que pairam sobre o convívio social,
a democracia e a própria humanidade. Alguns discorrem sobre tragédias
de alcance mundial, como as epidemiológicas e as climáticas, outros
sobre reles práticas criminosas, como o hackerismo – que de uma hora
para outra podem paralisar engrenagens essenciais da atividade
econômica. Mas não percamos tempo tentando prever o final dos tempos,
como fez Auguste Comte, imaginando um mundo inteiramente regido pela
ciência, ou como Karl Marx, que julgou haver antevisto o fim das
desigualdades sociais. Atenhamo-nos ao Brasil e a um horizonte temporal
de duas décadas – um pouco mais ou um pouco menos.
Estabelecida
a regra de jogo, peço vênia para expor minha avaliação. O Brasil atual
não está meramente estagnado, está retrocedendo, resvalando para uma
crise séria, antevéspera de um possível abismo. O que temos à nossa
frente não é apenas uma pedra no meio do caminho, como escreveu o poeta
Drummond. São ao menos três pedras, grandes e aterradoras. Três
demônios. Ei-los: 1) a estúpida polarização política que se configurou a
partir da eleição presidencial de 2018; 2) a corrupção sistêmica, que
os sapientes constituintes de 1988 tornaram quase impossível de ser
combatida; e 3) a lerdeza de nossas elites no tocante ao imperativo de
efetivar reformas que todos sabemos serem essenciais para o
desenvolvimento econômico e social.
A
polarização e suas consequências são o óbvio ululante. No pleito
presidencial de 2018, o antipetismo atingiu uma altura estratosférica,
condensando a repulsa de milhões de cidadãos à corrupção sistêmica,
cujas dimensões ficaram escancaradas nas inquirições sobre a Petrobrás.
Tal repulsa, como a Física ensina, haveria de produzir um movimento de
sentido contrário, no caso aquele que catapultou à mesma altitude um
capitão excluído das Forças Armadas por indisciplina e notabilizado
durante 29 anos por sua irrelevância como deputado federal. Só os muito
obtusos não percebem que a reedição desse enredo em 2022 poderá
perpetuar ainda por muitos anos a situação catastrófica em que nos
encontramos.
Claro,
há dois fatores novos a considerar. De um lado, a inflação e a sucessão
de descalabros do atual governo no combate à pandemia sugerem que Jair
Bolsonaro dificilmente terá gás para a disputa de 2022. Do outro, há uma
penca de hipóteses (o PMDB lançando o presidente do Senado, Rodrigo
Pacheco; o governador João Doria tentando ressuscitar o PSDB; uma
“terceira via”; etc.) que me abstenho de comentar porque, até o momento,
não sei se vamos ouvir aprazíveis harmonias ou a insuportável cacofonia
que nos atormenta ano após ano.
De
concreto, o que há é mais uma tentativa de pintar Lula como o xodó dos
empresários, quem sabe até como um estadista-pacificador: um Juscelino
Kubitschek. O problema é que essa fantasia nem de longe corresponde ao
que a situação brasileira está a exigir: um presidenciável cujo perfil
público seja em si mesmo uma indicação de que estaremos retornando à
normalidade. O Lula-estadista já começou mal, convocando a “militância”
para rediscutir a questão do “controle democrático da mídia”, vale
dizer, da censura. Resumindo: num cenário ideal, em vez da polarização
Lula x Bolsonaro, veríamos os dois gozando de suas merecidas
aposentadorias numa ilhota qualquer do Pacífico Sul.
O
segundo demônio, igualmente visível, é o fato de que nossas
instituições políticas hoje parecem mortos-vivos, assassinadas pela
corrupção, esta, sim, “imorrível”, eis que realimentada continuamente
pelo desatino de uma “cláusula pétrea” conhecida como “trânsito em
julgado” (Constituição federal de 1988, inciso LVII). Mercê deste
inciso, como ninguém ignora, divide a justiça brasileira em duas partes,
a dos ricos e a dos pobres, e, de quebra, solapa a credibilidade das
instituições e de toda a classe política, cujos integrantes podem
facilmente contratar advogados que os livrem da condenação em quarta
instância. E, assim, a justiça dos ricos permanecerá lépida e fagueira,
salvo na remota hipótese de um triunfal reaparecimento do chamado “poder
constituinte originário”.
Sem
presidenciáveis, instituições, partidos e parlamentares à altura da
encomenda, é lógico que tão cedo não veremos as reformas de que o País
necessita. Este singelo bico de pena basta para delinear o terceiro
demônio pétreo. Mesmo nas trevas brasilienses, qualquer alma penada
entende que o gigantismo e a voracidade tributária de sucessivos
governos nada mais são que o fruto teratológico de décadas e décadas de
patrimonialismo e corporativismo. Fadado ad aeternum a enxugar gelo,
nosso Estado é a mais ridícula versão de Sísifo que jamais se concebeu.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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