Lançado com a promessa de facilitar a vida do usuário, o Pix acabou facilitando golpes, assaltos, sequestros relâmpagos e até latrocínios. Reportagem de Guilherme Lopes, publicada pela Oeste:
Parecia
uma grande revolução tecnológica: transações financeiras realizadas
instantaneamente, sem custo, a qualquer hora do dia. Essa era a promessa
do Pix, mecanismo criado pelo Banco Central (BC), que começou a
funcionar integralmente no Brasil em novembro de 2020. A realidade,
entretanto, foi bem diferente. Menos de um ano depois do lançamento, o
que deveria facilitar a vida acabou facilitando golpes, assaltos,
sequestros relâmpagos e até latrocínios.
Para
tentar conter a onda de crimes envolvendo o Pix, o BC colocou em
prática nesta semana novas regras de segurança. O limite para
transferências entre 20 horas e 6 horas, por exemplo, foi fixado em R$
1.000. E os clientes agora podem definir um valor máximo para as
transações, que leva de 24 a 48 horas para ser alterado.
As
mudanças não solucionaram pelo menos dois problemas. O primeiro é que,
embora pareça uma quantia irrisória para figurões do mercado financeiro,
R$ 1.000 não é pouco dinheiro, pelo menos para os mais de 30 milhões de
brasileiros que, segundo o IBGE, vivem com até um salário mínimo por
mês (cerca de R$ 1.100). O outro: segundo investigadores da Polícia
Civil, os bandidos podem segurar a vítima até o dia seguinte para
efetuar a transferência de um valor maior.
Foi
o que aconteceu com um promotor de vendas de 25 anos, abordado no fim
de setembro numa rua do Jaraguá, na zona norte da capital paulista. Ele
voltava para casa depois de vender uma moto, cujo pagamento de R$ 10 mil
foi transferido para uma conta digital. Um carro com dois rapazes parou
ao seu lado, e, com uma arma em punho, o obrigaram a entrar no veículo.
Os
bandidos fizeram a vítima desbloquear o celular e, a partir daquele
momento, vasculharam as contas bancárias. O dinheiro da venda da moto
foi transferido para uma conta dos criminosos via Pix, só que o valor
não caiu imediatamente. “O dinheiro demorou a cair, então começaram a me
torturar com uma faca e colocando a arma na minha cabeça”, contou. Me
ameaçavam de todos os jeitos. Fui obrigado a deitar no banco de trás e
tive que olhar para o chão o tempo todo.” Ele passou quase 12 horas em
poder dos criminosos. “Fiquei com eles do final da tarde até o outro dia
de manhã, quando uma terceira pessoa ligou e avisou que o dinheiro
havia caído na conta. Só aí me libertaram.”
O
promotor de vendas registrou boletim de ocorrência no 74º Distrito
Policial. Ele também abriu um chamado no Banco Itaú. Em nota, a
instituição informou que “realiza uma análise minuciosa do caso em
conjunto com as autoridades”. No entanto, não deu prazo para resolver a
situação.
“Eu sou inocente, assim como você”
Foi
o que afirmou Vanessa Silva de Sousa, a dona da conta para a qual o
valor foi transferido. A chave Pix usada para a transação era um número
de celular e ficou registrada no extrato bancário. O promotor de vendas
conversou com ela pelo WhatsApp. “Um menino que eu conheci na balada
ligou pedindo minha conta emprestada”, afirmou Vanessa, ao alegar
inocência. “Ele tinha que receber um dinheiro e o Pix dele não estava
cadastrado. Resolvi ajudar e passei a minha conta. Depois de um tempo,
ele me ligou pedindo a senha do aplicativo para transferir o dinheiro
para a conta de outra pessoa.” A conversa não durou muito, e Vanessa
bloqueou o número da vítima. Oeste tentou ligar várias vezes, mas
ninguém atendeu.
Um
caso que causou comoção envolveu o gerente comercial Lucas do Valle, de
29 anos, neto do narrador e jornalista esportivo Luciano do Valle.
Lucas foi baleado na cabeça durante um assalto na zona sul de São Paulo e
morreu no dia 17 de setembro, depois de ficar 48 horas internado. De
acordo com a polícia, um adolescente de 15 anos, acompanhado de outro
rapaz que pilotava uma moto, atirou no gerente comercial. A dupla roubou
o carro da vítima e o celular. A polícia descobriu que os bandidos
chegaram a mandar uma mensagem para o pai da vítima pedindo uma
transferência via Pix. O garoto de 15 anos foi apreendido, e o outro,
maior de idade, que pilotava a moto, está foragido. O dono do veículo
foi identificado pela polícia e preso preventivamente.
Aumento de casos
Só
neste ano, de janeiro a julho, 160 mil celulares foram roubados por
criminosos no Estado de São Paulo, de acordo com a Secretaria de
Segurança Pública (SSP). Se, até pouco tempo atrás, os bandidos se
interessavam apenas pelos aparelhos, agora estão de olho também nas
informações das vítimas para aplicar golpes, principalmente usando o
Pix.
A
maneira como os delitos são praticados também mudou. Segundo as
informações da SSP, nos seis primeiros meses deste ano, houve 206
registros de sequestro relâmpago, um aumento de 39% em comparação ao
mesmo período de 2020 (quando o Pix ainda não existia). A SSP, contudo,
pondera que a base de comparação não é fiel, uma vez que, no ano
passado, devido às restrições provocadas pela pandemia, as pessoas
ficaram mais em casa, o que provocou queda nos índices criminais.
O
sequestro relâmpago atingiu recorde em 2013, quando 1,4 mil casos foram
registrados no Estado no primeiro semestre. De lá pra cá, os números
diminuíram drasticamente, até chegar a 278 crimes em 2019 (atual base de
dados utilizada pela polícia paulista) no mesmo período. “Nós estamos
em uma época de flexibilização da pandemia, e, por isso, a comparação é
gritante entre 2021 e 2020”, observou Albano David Fernandes, diretor do
departamento de Polícia Judiciária da capital. “O nosso comparativo é
com 2019.”
R$ 150 mil desviados estão bloqueados
A
Polícia Civil afirma que as equipes estão realizando um trabalho
intenso para combater várias quadrilhas que passaram a atuar nesse
segmento criminoso. No fim de setembro, uma megaoperação prendeu 335
pessoas suspeitas de envolvimento com roubos e furtos de celulares só na
capital paulista. “Além das quadrilhas que praticam os crimes de olho
na rapidez de ganhos com as transferências bancárias, o maior interesse
ainda está no comércio de aparelhos”, explicou Fernandes.
Os
investigadores também estão atrás dos “conteiros” — gente que empresta a
própria conta bancária para receber as transferências via Pix. Ao todo,
14 foram identificados e presos preventivamente. “Estamos rastreando as
contas e chegando a essas pessoas que pegam o dinheiro e passam para o
ladrão”, contou Osvaldo Nico Gonçalves, diretor do departamento de
operações estratégicas da Polícia Civil. “Elas também vão responder pelo
roubo.” Nesta semana, R$ 150 mil movimentados nas contas dos suspeitos
foram bloqueados e serão devolvidos às vítimas depois das investigações.
A
polícia também cobra maior participação das instituições bancárias no
combate aos crimes envolvendo o Pix. “Esse tipo de transação facilita,
mas é preciso que haja cautela, pois isso realmente chamou a atenção da
criminalidade”, disse Fernandes. As instituições financeiras,
entretanto, permanecem em silêncio quando são cobradas por medidas que
irão garantir maior segurança para os usuários.
De
acordo com o advogado Guilherme Moraes, especialista em direito do
consumidor, a ideia dos bancos é vencer os clientes pelo cansaço ao
protelar respostas e soluções. “As empresas estão indo no caminho
contrário ao da legislação, que prevê a desjudicialização”, afirmou.
“Elas acabam criando uma demanda judicial extra, com cada vez mais
clientes procurando a Justiça para tentar o reembolso dos valores
perdidos.” Moraes afirma que o setor bancário está transferindo a
responsabilidade para o consumidor ao não seguir critérios básicos de
cuidados, o que dá margem para abusos. “À medida que os bancos facilitam
a abertura de contas, acabam flexibilizando a segurança e beneficiando
os fraudadores”, alertou. A responsabilidade pelas transações caiu no
colo dos clientes como uma “facilidade”. No entanto, os bancos continuam
sendo os maiores beneficiados com uma maior economia, redução de
custos, fechamento de agências e demissão de funcionários.
“Um prejuízo de R$ 30 mil”
“Foi
desesperador”, resumiu a advogada Brenda Gomes, de 26 anos. “Comecei a
gritar, a chamar a atenção para pedir ajuda, mas ele saiu como se nada
tivesse acontecido. Em questão de minutos, desapareceu com o meu
celular.” A cena aconteceu no começo de setembro, quando ela aguardava
uma amiga em uma calçada da Vila Olímpia, bairro nobre de São Paulo. Um
bandido passou em uma bicicleta e tomou seu celular. “Os policiais
estavam parados na outra esquina”, contou. “A gente tentou fazer uma
busca pela região, mas não conseguimos achar o rapaz.” Demorou menos de
meia hora para Brenda conseguir bloquear o celular na operadora.
“Cheguei em casa achando que era só o prejuízo de perder o aparelho, mas
quando abri meu e-mail vi duas notificações do banco, com duas
transferências via Pix”, afirmou. “Aí eu me desesperei.” O criminoso
transferiu, para bancos diferentes, cerca de R$ 30 mil da conta da
advogada. O dinheiro seria usado para ela fazer um intercâmbio em 2022.
Ao
contatar o banco para tentar reaver o valor roubado, deram-lhe um prazo
de cinco dias. Depois, aumentaram para 15. Até agora, a instituição não
resolveu a situação. “Estou há quase um mês sem resposta, sem uma
justificativa do banco”, contou. “Do dia para a noite, todas as minhas
economias foram roubadas e, agora, ainda tenho que enfrentar o descaso.”
Ela não descarta mover uma ação contra a PicPay. A empresa informou que
prestou os esclarecimentos à cliente e que lamenta o episódio. Por fim,
alegou que “reforça constantemente orientações para conscientização dos
usuários sobre segurança”.
Pix pelo mundo
Ao
menos 56 países têm um sistema de transferência instantânea semelhante
ao Pix. O dado consta em um estudo publicado pela FIS, fornecedora
mundial de soluções de tecnologia para comerciantes, bancos e empresas
do mercado de capitais. De acordo com o relatório, a Índia lidera o
ranking dos países com os maiores números de transações instantâneas.
Desde 2019, o país asiático realizou cerca de 41,4 milhões de transações
em tempo real por dia. No Reino Unido, o Faster Payments, criado em
2008, tem grande adesão, com média de 7 milhões de transações diárias.
Os
Estados Unidos têm, desde 2017, um sistema de pagamentos em tempo real.
No entanto, o Federal Reserve (Fed, na sigla em inglês, equivalente ao
Banco Central) anunciou o lançamento do FedNow, para unificar as
transações e que vai funcionar de forma semelhante ao Pix. O programa
piloto começou a funcionar neste ano. A previsão é que o serviço tenha
início em 2023.
Tecnologia x segurança
Para
Franklin Melo, especialista em tecnologia da informação, as
instituições deveriam entender como funciona a sociedade brasileira
antes de implementar qualquer tecnologia. O advogado Luiz Augusto
D’Urso, especialista em direito digital, complementa: “A plataforma foi
colocada à disposição da população sem levar em consideração a realidade
brasileira. No dia a dia, percebemos que isso gera problemas, como o
aumento no número de crimes”.
Melo
explica que uma alternativa seria os bancos criarem dois fatores de
autenticação para os usuários. “Deveriam existir duas senhas: a primeira
você usa para as transações rotineiras e a segunda em casos de
emergência, para ser utilizada no momento de uma coação ou assalto”,
disse. “Assim, emitiria um alerta de que aquela transação é suspeita.”
A
tecnologia empregada pelas instituições é capaz de monitorar as
transações e identificar movimentos suspeitos. As inúmeras ferramentas
que existem no mercado oferecem essa vantagem aos bancos, que investem
bilhões de reais todos os anos para aperfeiçoar sistema de proteção a
fraude, evitar calotes e apontar maus pagadores na hora de decidir se
liberam ou não um crédito. Só em 2020, o setor bancário gastou R$ 25,7
bilhões em tecnologia. “Quando o usuário denuncia, a instituição
financeira tem a obrigação de verificar a origem do dinheiro e fazer o
bloqueio temporário para verificação em casos de crimes”, afirma D’Urso.
Por
enquanto, a saída continua sendo a precaução. “Não é conveniente deixar
em um aplicativo de celular todo o seu patrimônio”, sugeriu Melo. “Use
uma conta somente para o Pix, com um valor de emergência. A maior parte
do dinheiro precisa estar em outra conta, onde você só terá acesso pelo
computador ou na agência.”
Em um mês, as queixas aumentaram 40%
O
Procon está acompanhando os casos de fraude envolvendo o Pix e se
reuniu com representantes do Banco Central. O órgão propôs que as
instituições façam o estorno de valores em transações suspeitas.
“Reconhecemos os benefícios trazidos pelo Pix e entendemos que não se
pode travar o avanço tecnológico, mas é preciso que a proteção do
consumidor seja garantida”, afirmou Fernando Capez, diretor-executivo do
Procon.
De
janeiro a agosto deste ano, o órgão registrou 2,5 mil reclamações
relacionadas ao Pix, sendo que 40% das queixas foram entre os meses de
julho e agosto. A maioria delas, pedidos de devolução ou reembolso. De
acordo com o Código de Defesa do Consumidor, é dever do fornecedor arcar
com eventuais prejuízos decorrentes do serviço prestado. “Nós iremos
responsabilizar os bancos pelas perdas que os correntistas sofrerem com
esses golpes”, avisou Capez.
Segundo
D’Urso, na maioria dos casos as instituições estão negando o reembolso
quando o cliente entra em contato e informa ter sido vítima de golpe ou
roubo. “Elas alegam que não contribuíram para a fraude, pois o celular
estava desbloqueado no momento do crime, facilitando o roubo”, explicou.
Porém, quando os casos são judicializados, alguns magistrados entendem
que o banco é corresponsável e, por isso, determinam o reembolso dos
valores perdidos.
Desde
2010, havia o entendimento de que o criador do aplicativo era
responsável pelas fraudes, mas isso começou a mudar a partir do momento
em que os usuários passaram a ser alertados dos golpes. “Nos
aplicativos, há mensagens e orientações, e, quando o cliente clica em
‘entendi’, o banco registra essa informação”, afirmou D’Urso. “Num
possível processo, isso muda a responsabilidade para o consumidor, pois a
empresa afirma que ele foi alertado.”
Na
contramão das evidências, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban)
afirma que não há falhas nos aplicativos e que o sistema é seguro. De
acordo com o diretor da Comissão Executiva de Prevenção a Fraudes,
Adriano Volpini, as instituições estão direcionando toda sua expertise
com os sistemas de pagamentos para o Pix. “Por terem acesso aos
celulares desbloqueados, os criminosos realizam buscas por senhas
armazenadas pelos próprios usuários no smartphone”, disse.
Mais regras para proteger os clientes
Até
o dia 16 novembro, outras medidas entrarão em vigor. O BC mudou o
regulamento para responsabilizar as instituições em caso de fraudes
decorrentes de falhas dos próprios mecanismos de segurança. Outras ações
preveem o bloqueio cautelar do recurso em até 72 horas em caso de
movimentação atípica, para permitir que a instituição faça uma análise
mais robusta e tenha a possibilidade de devolver os valores roubados.
Ainda
não existe um consenso sobre quem, de fato, deverá arcar com os golpes
envolvendo as transações via Pix. Desde que a ferramenta está disponível
para os clientes, a Justiça brasileira adotou diferentes decisões.
Recentemente, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negou um
pedido de ação contra o Itaú feito por uma vítima que teve o celular
furtado e R$ 8 mil retirados de sua conta. A Justiça entendeu que, nesse
caso, a responsabilidade era exclusiva do cliente, pois os criminosos
fizeram a transação utilizando a senha da vítima.
Caso
ocorra a fraude, o BC orienta que os clientes entrem em contato com o
banco para informar o caso. Segundo a instituição, cabe aos bancos
analisar o caso e o eventual ressarcimento. Se o golpe no âmbito do Pix
for decorrente de falhas nos mecanismos de gerenciamento de riscos,
esses deverão se responsabilizar pelo caso.
Nas
propagandas, os bancos costumam vender facilidades, um mundo de
fantasia e “tudo ao alcance de um clique”. Na vida real, agem
burocraticamente, se eximem de qualquer responsabilidade e dificultam a
vida dos usuários. O lado mais fraco, como sempre, continua sendo o do
cliente.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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