Quais as origens históricas do populismo, como chegou até hoje e como se enquadra nas diferentes ideologias? O Observador publica um excerto de "Ideias Sem Centro", de Alexandre Franco de Sá, lançado em setembro em Portugal:
No
livro “Ideias Sem Centro — Esquerda e Direita no Populismo
Contemporâneo”, Alexandre Franco de Sá não pretende apenas traçar o
percurso histórico da ideia de “populismo” – o conceito e seus
protagonistas. Pelo contrário, esse é o ponto de partida para um livro
que quer, essencialmente, libertar a ideia de preconceitos e de
interpretações mais simplistas.
O
autor procura analisar as raízes do populismo e os seus efeitos ao
longo do tempo, mas também quer relacionar o líder populista e
respetivas motivações com os diferentes espectros políticos e
ideologias. Onde é que a construção social de “classe” entra na evolução
do populismo e qual é aqui o lugar específico de Portugal.
Alexandre
Franco de Sá, estudioso de Heidegger e de Carl Schmitt, especialista em
Filosofia Política e Filosofia Moderna e Contemporânea, é professor e
investigador na Universidade de Coimbra. O Observador faz a
pré-publicação do livro “Ideias Sem Centro — Esquerda e Direita no
Populismo Contemporâneo”. Este é um excerto retirado do capítulo em que o
autor analisa as origens do “líder populista”.
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Contrapondo-se
ao entusiasmo juvenil, mobilizador e revolucionário das elites
progressistas, o populismo originário parte do povo como uma unidade
política pré-existente, velha e intrinsecamente conservadora. Para ele,
dir-se-ia que um povo jovem é uma contradição nos próprios termos. No
entanto, tal como o «mundo», pensado por Hannah Arendt, é algo estável
que perdura frente às mudanças naturais, mas é também ele feito de uma
materialidade natural que se corrói e desgasta, assim também o povo é
uma velha herança sempre ameaçada pelo curso do tempo. Por essa razão,
para além da representação do povo como uma unidade que antecede os
conflitos políticos, e de um conservadorismo que se contrapõe ao
progressismo e à atomização individualista, o populismo originário é
também marcado pela abertura da possibilidade de que o povo se associe a
«guardiães» que o defendam da passagem do tempo e das suas
consequências. É nesta figura do «guardião» que podemos ver emergir uma
espécie de arquétipo do líder populista.
Como vimos, para o populismo da nova esquerda, pensando o povo como uma construção produzida por uma lógica equivalencial entre demandas e indivíduos, o líder não aparece senão como uma figura vazia. Caberia ao líder ser mera expressão da cadeia de equivalências estabelecida entre singularidades que nada teriam em comum. Assim, este teria aqui apenas a função de expressar o «afecto comum» gerado entre indivíduos heterogéneos e dispersos, conforme sugere Chantal Mouffe. No populismo originário, porém, o líder populista tem um significado diferente. Ele surge com o sentido de representar e defender politicamente, quando tal se revele necessário, a sociabilidade pré-política do povo. Se o povo consiste numa unidade que antecede os conflitos políticos e a pluralidade social, o líder emerge, no populismo originário, no momento de converter em política essa sociabilidade ou o seu conservadorismo pré-político. Ele reger-se-á, portanto, ao contrário do que acontece no populismo de esquerda, por aquilo a que se poderia chamar um primado da acção. Tal significa que o populismo originário pressupõe o vínculo a uma abordagem da política que está nos antípodas das políticas imaginárias das lutas identitárias e das guerras culturais.
Vinculado
à unidade política primordial do povo, aos seus costumes, instituições e
tradições, o líder populista aparece como o sujeito de uma acção
política conservadora. É, pois, no momento em que esta unidade se
encontra ameaçada, no momento em que os costumes se corrompem, as
instituições se desvanecem e as tradições se perdem, que o populismo
originário reclama um líder cuja acção seja a de um katechon, para usar a
misteriosa figura invocada por São Paulo, um travão ou uma barreira
colocada frente ao livre curso de um processo de corrupção, dissolução,
anomia e desordem. Enquanto homem de acção, o líder populista não é um
mero tribuno que simplesmente dá expressão à resistência espontânea da
gente vulgar contra um tempo cujo curso desenfreado faz desaparecer o
seu mundo comum. Tampouco é um demagogo ou um líder partidário
especializado no protesto. Ligado essencialmente à acção, o verdadeiro
líder no populismo originário é outra coisa. Não se ficando pelo
protesto, o seu modelo é o do «grande homem», o homem que age no sentido
de guardar a tradição, de defender costumes e instituições, de
restabelecer a ordem, reinstituir o povo e refundar o seu espaço
convivial numa era em que este parece perdido. Neste sentido específico,
não só diverge, mas é o oposto do «significante vazio» mobilizador de
«afectos» de que falam Laclau e Mouffe. Corresponderá, se usarmos a
velha tipologia weberiana, à figura de um líder carismático. Mas
trata-se de um carisma que pode estar ao serviço de instituições e é,
por princípio, compatível com elas.
Contemporaneamente,
a conquista pela nova esquerda de uma presença dominante em ambientes
socialmente valorizados como os círculos mediáticos e universitários
contribuiu para vulgarizar a «narrativa» segundo a qual a diferença
entre o seu radicalismo e o populismo de direita consistiria no facto de
ela aceitar as regras e o sistema democrático, enquanto a direita
populista seria a herdeira de uma tradição política divergente da
democracia, onde se amontoam os fantasmas da ditadura, do autoritarismo e
do fascismo. Daí decorrem a mobilização mediática e os apelos aos
«cordões sanitários» das pessoas de bem para esconjurar o perigo advindo
de tais heranças para a vida normal de sociedades decentes. O argumento
não é novo e baseia-se na velha atribuição ao «fascismo» de todas as
violências e iniquidades, obscurecendo o seu carácter reactivo à ameaça
da violência bolchevista. Contudo, tal «narrativa» alberga algo
verdadeiro que importa salientar. Trata-se da percepção correcta de que,
no seio das democracias liberais contemporâneas, o populismo de direita
encerra, independentemente do seu carácter «anti-sistema» e dos seus
excessos demagógicos, uma genuína vontade de acção de que o radicalismo
universitário da nova esquerda, quase sempre acomodado, desvinculado da
acção e desenvolvido em «ambiente fechado», manifestamente carece.
Salazar |
Ao contrário do que se passa com as revoltas virtuais e as lutas simbólicas que povoam o imaginário da nova esquerda, o populismo de direita não se limita às costumeiras expressões de indignação moral que proliferam nas redes sociais, não esgota esforços na vigilância da linguagem quotidiana contra as supostas micro-agressões nem confunde o espaço político com as cadeias televisivas. Pelo contrário. Independentemente da sua maior ou menor capacidade de mobilização, surge ligado a uma cultura de intervenção política e a uma disponibilidade prévia para se adaptar de maneira a poder participar pragmaticamente na disputa do poder. É esta disponibilidade, aliás, que o torna um alvo, particularmente detestado, da indignação e do escândalo dos intelectuais bem pensantes, sempre inclinados a compreender a política no quadro da disputa moral entre o mal e o bem, sempre atentos à vigilância inflexível da linguagem e à sanção moralista dos comportamentos alheios, e sempre prontos a exigir, como condição de respeitabilidade, uma «sensibilidade» que ostentam como se dela tivessem o monopólio. Nada poderia estar mais longe do líder populista do que esta inibição da acção por códigos e pudores moralizantes.
A
ligação ao plano da acção explica, por outro lado, que o líder
populista não seja um ideólogo que encontra na realidade apenas uma
tabula rasa, disposta a ser preenchida e cunhada a seu bel-prazer pela
estrutura linear e límpida do pensamento. A política é para ele, como
dizia Bismarck, a arte do possível. E é a partir daqui que surge o seu
carácter conservador, na medida em que a acção é sempre a relação com
uma realidade que se lhe depara, que lhe resiste e delimita o campo das
possibilidades. Nesta medida, o conservadorismo do líder e do povo
co-pertencem-se: a acção do líder populista concebe-se como a defesa de
uma realidade ordenada e pré-existente, de uma «ordem concreta» ligada
ao povo enquanto comunidade real que se estende no tempo ao longo de
gerações.
O
«homem de acção» que defende o povo e pretende falar em seu nome, pode
aparecer como um político hábil e demagógico ou como um chefe militar,
como um tribuno democrático ou como um ditador cesarista, como um
caudilho inflamado ou como um estadista frio e racional.
Naturalmente,
a defesa desta ordem não se caracteriza necessariamente como um vínculo
às leis ou às instituições, à legalidade ou ao Estado. O líder
populista apareceu muitas vezes como um político, um governante ou um
ditador carismático que, relacionando-se directamente com o povo,
ultrapassa a ordem legal. No entanto, também não é necessário que ele se
baseie numa pura legitimidade carismática, contrapondo-se à
legitimidade tradicional e legal. As formas de legitimidade do exercício
do poder estabelecidas por Max Weber – a carismática, a legal e a
tradicional – correspondem a uma tipologia ideal que não pressupõe um
carácter exclusivo nos casos concretos. Assim, no que respeita à
liderança populista, é muito claro que não há descontinuidade entre o
líder carismático e a possibilidade de uma forma institucionalizada de
liderança. No contínuo entre as suas várias configurações possíveis, o
«grande homem» do populismo, o «homem de acção» que defende o povo e
pretende falar em seu nome, pode aparecer como um político hábil e
demagógico ou como um chefe militar, como um tribuno democrático ou como
um ditador cesarista, como um caudilho inflamado ou como um estadista
frio e racional.
Na
Europa das décadas de 20 e 30, o fascismo converteu o cesarismo e a
reacção à ameaça da violência bolchevista num nacionalismo identitário,
aguerrido e violento. No entanto, por maior que fosse o ímpeto da
reacção fascista nos tempos peculiares que medeiam as duas Guerras
Mundiais, o conservadorismo populista originário, com a sua invocação
dos costumes populares e a lembrança de uma sociabilidade pré-política
do povo, conseguiu gerar também o aparecimento de ditaduras autoritárias
que, formadas nessas décadas de crise, se souberam transformar em
regimes que tiveram a capacidade de se adaptar e sobreviver à derrota
militar do fascismo na Segunda Guerra Mundial. O caso de Espanha e
Portugal, sobrevivendo no início da segunda metade do século xx com
estruturas políticas diferentes das democracias liberais estabelecidas
no pós-Guerra, são aqui os casos paradigmáticos. Nos dois lados da
Península Ibérica, ambos os países tinham edificado regimes autoritários
a partir de ditaduras estabelecidas por golpes militares apoiados numa
reacção popular contra o bombismo, os assassínios e a degradação da
convivialidade social pelas mãos do fanatismo político. Ambos os regimes
estavam baseados num cesarismo militar que encontrava no exército, à
maneira do século xix, o último guardião da ordem, da independência
nacional e da liberdade do povo. Mas ambos os sistemas políticos se
distinguiram claramente no que respeita à figura do «líder populista»
que acabaram por gerar.
No caso espanhol, o principal jurista de Franco, Francisco Javier Conde, discípulo de Carl Schmitt, tratou de elaborar, na sequência da figura do ditador comissário, uma «doutrina do caudilho». Este, em contraposição ao Duce fascista ou ao Führer nazi, caracterizava-se, segundo Conde, pela sua relação com o povo concreto e não com o «mito nacional» ou o «espírito do povo». «Distingue o Fascismo entre Nação e Povo», escreve Conde. O Povo, cita Conde em italiano, seria para o fascismo «uma situação de facto mais ou menos inconsciente e inerte»; a Nação, «a guardiã e transmissora do espírito do povo». Assim, o fascismo ligar-se-ia, segundo Conde, à Nação e não ao Povo. Tendo por base o mito identitário da Nação, o fascismo estaria «impregnado dessa ideia» e assentaria a sua autoridade «sobre o solo metafísico do espírito do povo». Seria, por isso, muito diferente o que ocorreria com a ditadura espanhola. Esta basear-se-ia na relação com o povo concreto, «uma entidade ou unidade natural, fenómeno primário de agrupamento determinado pela simples convivência». Longe de ser unido por um mito nacional, seria a vida concreta que uniria o povo espanhol, do qual emergiriam a nação e uma empresa nacional a realizar como «incorporação de vontades livres a essa empresa pelo caminho do entendimento de amor». A nação é, para Conde, «vida na forma que se produz pela união num sentido, pela participação em complexos comuns de significação, e coalha em figuras e ordenações que se transmitem de geração em geração».
Do
mesmo modo, em Portugal, a ditadura de Salazar traçava as distâncias
necessárias entre a ideia ou o mito identitário do nacionalismo fascista
e os costumes do povo português, base da sua sociabilidade
pré-política. Nas entrevistas concedidas a António Ferro, e sem deixar
de manifestar admiração pelas realizações do fascismo italiano, Salazar
demarcava-se do cesarismo de Mussolini na sua forma de se contrapor ao
bolchevismo de Lenine, «cego à história, à experiência, aos resultados
visíveis em miséria e sofrimento da sua ideologia». «A nossa Ditadura» –
diz Salazar a Ferro – «aproxima-se, evidentemente, da Ditadura fascista
no reforço da autoridade, na guerra declarada a certos princípios da
democracia, no seu carácter acentuadamente nacionalista, nas suas
preocupações de ordem social. Afasta-se, porém, nos seus processos de
renovação. A ditadura fascista tende para um cesarismo pagão, para um
estado novo que não conhece limitações de ordem jurídica ou moral, que
marcha para o seu fim, sem encontrar embaraços nem obstáculos. […] O
Estado Novo português, ao contrário, não pode fugir, nem pensar em
fugir, a certas limitações de ordem moral que julga indispensável
manter, como balizas, à sua acção reformadora». Se o fascismo encontrara
o seu fundamento na invocação da nação como mito soreliano, e na
violência que este poderia desencadear, Salazar vê no povo português não
uma nação transformada em mito identitário, mas uma sociabilidade
pré-política e um património de costumes que, transmitidos de geração em
geração, seriam o obstáculo necessário a uma violência produzida, em
última análise, pela sua corrupção: «A violência, processo directo e
constante da ditadura fascista, não é aplicável, por exemplo, ao nosso
meio, não se adapta à brandura dos nossos costumes…»
É
a concepção de um povo radicalmente apegado à ideia da sua
independência, diante de elites sofisticadas que não hesitam em
relativizá-la ou mesmo traí-la em nome do progresso ou de modas e
interesses estrangeiros, que constitui a base mais fundamental do Estado
Novo.
Liderado
por um professor universitário de modos protocolares e discurso
limpidamente racional, muito distante de um chefe político inflamado ou
de um caudilho militar, o nacionalismo português desloca a representação
do líder populista para a figura do estadista. Para Conde, o caudilho
encontrava no seu «princípio de legitimidade imanente» o carisma:
«Acaudilhar é mandar carismaticamente.» Por seu lado, considerada na
linha do populismo originário, a figura do estadista expressa o momento
em que a relação informal entre povo e líder carismático se transforma
num louvor institucionalista do Estado e das instituições que asseguram a
sua liberdade e independência. Nesta linha, a figura de Salazar é
talvez o exemplo histórico mais paradigmático desta transformação. Com
ele surge o imaginário de um homem de Estado ligado ao povo simples e
honesto, rural e conservador; não um agitador ou um césar inflamado, nem
um oficial superior saído da aristocracia militar, mas um estadista
para quem a liberdade do povo, pensada nos termos de uma independência
nacional que se sobrepõe a quaisquer direitos subjectivos, se constitui
como imperativo histórico absoluto. Daí que, ao definir os seus
princípios fundamentais, Salazar não hesite em escrever, em 1930, que no
futuro Estado Novo «a primeira realidade é a existência independente da
Nação Portuguesa».
Partindo
da sua posição de estadista, o Estado é, para Salazar, essencialmente o
garante da existência do povo português como povo independente. E a sua
força ditatorial enquanto Estado autoritário – a força de um Estado
pensado como limitado pela moral, mas colocado como valor superior a
quaisquer direitos subjectivos – seria a condição indispensável não do
exercício da violência, mas da sua contenção por meio do seu monopólio.
Como escreve Salazar, numa espécie de síntese weberiana desta relação
entre Estado e violência: «Por sobre as fracções de poder – os serviços,
as autarquias, as actividades particulares e públicas, a vida local, os
domínios coloniais, as mil manifestações da vida em sociedade –, sem
contrariá-las ou entorpecê-las na sua acção, o Estado estenderá o manto
da sua unidade, do seu espírito de coordenação e da sua força: deve o
Estado ser tão forte que não precise de ser violento.» É a concepção de
um povo radicalmente apegado à ideia da sua independência, diante de
elites sofisticadas que não hesitam em relativizá-la ou mesmo traí-la em
nome do progresso ou de modas e interesses estrangeiros, que constitui a
base mais fundamental do Estado Novo. O quanto essa concepção se
articula com a contraposição populista entre povo e elites mostram-no,
por exemplo, a visão panorâmica desenvolvida por Alberto Franco Nogueira
em torno das crises históricas portuguesas, numa altura em que, depois
da morte de Salazar, o Estado Novo se avizinhava do seu fim: «Mas se o
escol é impressionável, volúvel, preocupado com as críticas alheias,
submisso às ideias estranhas como se não possuísse capacidade de
autonomia mental, e destituído de uma visão histórica da comunidade
nacional, o povo por seu lado reflecte a consciência da nação e dos seus
interesses nacionais permanentes.»
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