Um povo tão isolado que, à revelia de 99% da humanidade, ainda usa farrapo na cara é capaz de se convencer de que, na economia, vive no paraíso. A crônica semanal de Alberto Gonçalves para o Observador:
Isto
está a cair aos bocados, não está? Depende da perspectiva. O preço dos
combustíveis, por exemplo, não cai. Os preços da electricidade, da água,
dos alimentos e das matérias-primas em geral não caem, assim como a
quantidade de empresas insolventes. Os impostos e as taxas não caem. O
custo das casas não cai, apesar do comovente desassossego de tantos
políticos com a habitação. O desemprego real não cai. A dívida pública
não cai. O poder de compra e a produtividade continuam a marchar rumo
aos píncaros da tabela dos países europeus com menor poder de compra e
produtividade. A debandada de profissionais do glorioso Serviço Nacional
de Saúde está em crescimento constante, o que bate certo com o aumento
de doentes sem atendimento ou depositados em garagens. O contingente de
professores em falta nas escolas mostra igualmente sinais de subida, à
semelhança dos substitutos sem qualificações. E da percentagem de
portugueses a emigrar ou desejosos de o fazer nem se fala.
O
ideal, aliás, é não se falar de coisa nenhuma. O prof. Marcelo já
decretou três ou quatro centenas de vezes que, do futebol de salão aos
caretos de Podence, somos “os melhores dos melhores do mundo”, pelo que
não há motivos para descrença. Para nós, ser os melhores do mundo é
facílimo: basta desconhecer, ou fingir que se desconhece, o que o mundo
é. E nesta particular modalidade há bastantes compatriotas que são –
repitam comigo – os melhores dos melhores. Um povo tão isolado que, à
revelia de 99% da humanidade, ainda usa farrapo na cara é capaz de se
convencer de que, na economia, vive no paraíso.
O
fisco caseiro dá uma cabazada à carga tributária da Suíça, da América e
da Irlanda? Sim, mas aí precisas de um hospital e largam-te a morrer na
rua, respondem, informados pela SIC e pelo “Público”, os melhores dos
melhores. O salário médio local está abaixo do grego e é um quinto do
suíço? Talvez, interpõem os melhores dos melhores, mas em Zurique um
cimbalino custa setenta euros ou francos ou lá o que é – e não presta. O
PIB per capita indígena é metade do belga e um terço do dinamarquês?
Muito bem, impacientam-se os melhores dos melhores, mas lá queres
apanhar um bronze e chapéu. Os melhores dos melhores não se deixam
enganar. Os melhores dos melhores querem mesmo ser enganados.
No
máximo, enquanto sorvem café à beira-mar, a aguardar pela consulta de
dermatologia que marcaram há somente dois anos, os melhores dos melhores
conseguem admitir a existência de alguns contratempos de relevância
discutível, sempre atribuíveis à “crise pandémica”. O pormenor de a
crise ser endémica e chamar-se socialismo não vem a propósito em
conversas sofisticadas. Não sejamos “negacionistas”. Não nos vamos pôr a
dizer que a Covid veio a calhar para o PS concluir o seu projecto de
conquista do Estado e de estatização da sociedade, por um lado porque
desviou as atenções das habilidades em curso, por outro porque criou um
bode expiatório da destruição entretanto produzida.
A
verdade é que qualquer pretexto serve a barafunda, e qualquer barafunda
serve para disfarçar o facto de, imagine-se, termos descido a um buraco
sem luz nem saída. Agora que a Covid não parece chegar para manter os
níveis de histeria nos valores desejáveis pelo PS, inventou-se à pressa o
drama do Orçamento e um punhado de dramalhões associados. Ao menos do
prof. Marcelo nunca vêm surpresas: está tipicamente apavorado face à
pífia possibilidade de agitação política e de complicações na própria
popularidade. Sobre as restantes personagens, o comentariado divide-se.
Consoante
os pensadores, ou o dr. Costa quer eleições para ganhar a maioria ou o
dr. Costa não quer eleições para não arriscar perder o controlo da
“bazuca”. Ou os partidos comunistas querem eleições para suster
eleitorado ou os partidos comunistas não querem eleições para não
acabarem dizimados. Ou o dr. Rio quer eleições para tentar alcançar o
poder ou o dr. Rio não quer eleições para manter o lugarzinho de
aspirante por algum tempo. E depois temos o dr. Rangel, o formidável
vulto que ressuscitará, ou não, o “espaço” da “direita” que não é
exactamente de direita. Nem o “Sleep” do Andy Warhol possuía enredo tão
fascinante.
Brincadeiras
à parte, o que é que eu acho? Acho que o OE vai passar. E que, se
espantosamente o OE não passar, o PS vencerá as “legislativas” com
pequena folga. E que, se o PS não vencer de todo, não serão os drs. Rio
ou Rangel a liderar a mudança de que a “direita” e sobretudo Portugal
precisam. E que, se por absurdo os drs. Rio ou Rangel se revelarem
aquilo que jamais foram, os danos causados pela frente de esquerda não
são reversíveis no curto ou médio prazo. O país não começou a
esfarelar-se hoje.
Hoje,
assente a poeira da pandemia, a devastação apenas se vê com mais
nitidez. Hoje, salvo milagre, aproximamo-nos de um ponto sem retorno. De
hoje em diante, o pouco que sobra desabará à nossa frente, sem
estrondo, com suspiros e, dado o Inverno, alguma tosse. Acredito que, à
medida que os destroços as atinjam na cabeça, um número maior de pessoas
questionará a lengalenga dos “melhores dos melhores”. Mas um banho de
realidade não nos impede de permanecer sujos. Em suma, acho que quase
tudo é preferível ao desgraçado caminho que escolhemos, e que quase nada
nos desviará dele.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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