O filósofo
basco Daniel Innerarity esboça em seu novo livro um plano de choque
para transformar a democracia e garantir sua sobrevivência. Ele defende
um ‘reset’ radical da política:
O
filósofo Innerarity (Bilbao, 60 anos) é um dos grandes pensadores do
mundo de acordo com a revista Le Nouvel Observateur. Sua solvência no
âmbito do pensamento é provada em uma dezena de ensaios como La sociedad
invisible (A Sociedade Invisível), Los tiempos de la indignación (Os
Tempos da Indignação), Un mundo de todos y de nadie (Um Mundo de todos e
de Ninguém) e La democracia del conocimiento (A Democracia do
Conhecimento). Agora, o professor de Filosofia Política e Social da
Universidade do País Basco acaba de publicar Una teoría de la democracia
compleja. Gobernar en el siglo XXI (Uma Teoria da Democracia Complexa.
Governar no Século XXI, ainda inédito no Brasil), cuja primeira edição
se esgotou em dois dias na Espanha, em que esboça a necessidade de transformar o sistema para sua sobrevivência.
Pergunta.
Seu livro apresenta um plano de choque à democracia. Propõe uma
democracia mais sustentada na biologia do que na física.
Resposta. O paradigma das instituições modernas da democracia é a relação entre forças físicas tal como foram definidas por Newton
e Laplace. Jefferson, por exemplo, gostava muito de física. Quando se
analisa uma ideia tão fundamental ao sistema político como o checks and
balances, pesos e contrapesos, é um universo de inércias e gravidade. A
pergunta que abre o livro é se a reflexão política fez a passagem que as
ciências da natureza realizaram, que desde então passaram por Einstein,
Heisenberg, os avanços da neurociência, a teoria da emergência, das
causalidades não lineares... Minha resposta é não. Ainda estamos
pensando na política em um universo newtoniano.
P. No que a democracia ficou defasada?
R.
Em quase tudo. Com exceção do núcleo de valores, de princípios
normativos para os quais nunca encontraremos um substituto útil: a ideia
de autogoverno, de igualdade, de representação,
de deliberação, de justiça... Essas ideias não sofrerão grandes
evoluções, a não ser que precisem se concretizar em contextos
diferentes. Mas o restante das ideias... Nosso conceito de soberanias,
territorialidade, autarquia, de poder, sofreram uma transformação que
contrasta muito com a evolução feita pelos que se dedicam a pensar
nessas coisas e os que exercem a política prática.
P. A questão, portanto, não são ajustes, e sim redefinir o sistema.
R. Projetamos um sistema para sociedades que cumpriam condições como simplicidade, autarquia, abrangência e instrumentos tecnológicos
de pouquíssima sofisticação. E em 300 anos teremos um mundo
interdependente, espaços abertos, soberanias compartilhadas em muitas
regiões do mundo (ou pelo menos relações poliárquicas), uma sociedade
muito mais plural, mais granular, mais diversificada... Já não funciona
que os que estavam no Governo supostamente concentravam o maior nível de
conhecimento frente a uma massa que sabia pouco. Hoje os Executivos
precisam governar com subsistemas muito inteligentes. Isso significa um reset radical da política. Não estamos diante da típica reforma administrativa, sequer constitucional.
P. Essa redefinição é urgente?
R.
Devemos realizar já certas revisões de nossos conceitos e o quanto
antes, melhor. Para muitas coisas já chegamos tarde. Por exemplo a crise climática.
Para a robotização, em parte, também. Mas esse é um processo que também
tem um longo percurso. Deveríamos conseguir que as instituições
políticas de vários formatos incorporem em seu estilo de governo
dimensões cognitivas e reflexivas. Estamos passando de uma época em que
as instituições estavam acostumadas a dar ordens a um mundo em que se
deve dedicar o maior tempo possível a aprender.
P. Como fazer essa passagem ao “governo dos sistemas inteligentes” sem danificar seus princípios?
R. É o grande desafio. A direita costuma ter uma linguagem de adaptação:
é preciso se adaptar às mudanças sem se preocupar muito pelos critérios
de legitimidade que podemos estar carregando em certas adaptações. Em certa parte da esquerda, o que temos é um discurso de impugnação,
da desordem do mundo, das injustiças e uma atitude receosa em relação
às tecnologias e à globalização. Entre essas duas concepções equivocadas
da vontade política (adaptação e repúdio) se abre todo um campo que
deveria ser presidido por como conseguir realizar (não adaptar) os
ideais irrenunciáveis da democracia em contextos e situações que vão
mudando com o passar do tempo.
P. Sabemos como?
R.
Não seria honesto apresentar meu livro como uma solução a todas essas
questões. Meu livro pretende ser uma caixa de ferramentas para começar
com essa tarefa. Não sei como construir o mecanismo, mas proporciono
alguns instrumentos que podem ajudar muita gente, porque precisamos
fazer isso entre todos: governantes que abandonem esse foco obsessivo no
curto prazo e na escaramuça imediata, mas também a população, os veículos de comunicação...
P. O senhor considera que a principal ameaça da democracia é a simplicidade. Não é um contrassenso?
R.
Simplicidade, no sentido da simplificação. Em uma versão dupla. Em
primeiro lugar, há várias disfuncionalidades na política porque há um
contraste entre os conceitos que recebemos e as realidades com as quais
estamos lidando. Essa simplificação, conceitos políticos que levam em
consideração a riqueza da sociedade e dos novos entornos, é a primeira.
Mas há outro tipo de simplificação, mais de ordem prática, que tem a ver
justamente com esse mundo da complexidade, cheio de incertezas em que
estamos navegando como podemos, em que, pelo menos a curto prazo, os
simplificadores têm todas as chances de ganhar. Quem oferece um consolo
passageiro, um esclarecimento enganoso do panorama é recompensado em
termos políticos.
Quem oferece um consolo passageiro, um esclarecimento enganoso do panorama é recompensado em termos políticos
P. Como Donald Trump e Boris Johnson?
R.
Por exemplo. Quem fala de construir um muro para delimitar um espaço,
todo mundo entende isso. Quem fala de recuperar um controle que havíamos
perdido, mais da metade dos eleitores britânicos entende isso.
P. A democracia se torna complexa e a política se simplifica.
R. Ou, pelo menos, a política não tem o nível de complexidade adequado à sociedade que deve gerir. É o famoso princípio de Ashby
de que não podemos desenvolver um sistema inteligente se não
desenvolvermos um nível semelhante de complexidade. E se ele não existe,
o que se deve fazer é transacionar e estabelecer uma relação mais
horizontal. Quando o regulador é mais inteligente do que o regulado, a
relação pode ser vertical e funciona bem; quando estão igualados, na
verdade desequilibrados no sentido contrário, o que se deve fazer é
obter informação, acertar com o regulado um certo tipo de troca entre
informação e legitimidade.
P. O senhor fala de proteger a democracia de si mesma, ou seja, da imaturidade, fraqueza, incerteza e impaciência da população.
R.
A soberania popular, para que não aja irreflexivamente, seja mais
deliberativa e produza melhores resultados, precisa estar
bem-organizada. O soberano tem a última palavra, mas também sabemos que
se equivoca muitas vezes. Pensamos que a democracia é soberania popular e
nos damos conta de que a autolimitação da soberania popular faz parte
da soberania popular. De fato, todos nós o fazemos. Estamos colocando
limitações no plano pessoal e coletivo para justamente ter uma maior
liberdade.
P. A democracia é até um instrumento útil para os que pretendem atacá-la.
R.
Não podemos proteger a democracia ao extremo de não correr alguns
riscos. É um sistema aberto, em que há liberdade de expressão, em que
qualquer um pode entrar (o direito de sufrágio passivo está aberto a
todo mundo),... E mais, quando se horizontalizou muito e existem cada
vez menos guardiões da porta: os jornais já não têm a verticalidade que tinham,
os partidos não são organizações férreas, os próprios agentes políticos
estão submetidos ao monitoramento de todos os pontos de vista... A
democracia, por sua própria definição, será sempre um sistema de governo
frágil e vulnerável. E precisamos aprender a gerir essa
vulnerabilidade.
P. A perda de confiança nas instituições e intermediadores é uma causa ou um efeito do que acontece à democracia?
R.
Todas as instituições que estabeleciam uma intermediação entre o
público e o interesse geral foram desafiadas pela sedução do
imediatismo. Já existem muitas utopias
que colocam que o melhor esquema de agregação das microvontades é criar
um dispositivo que sem nenhuma deliberação reunisse nossos desejos.
Diante disso, defendo que uma política de mediações bem configurada pode
ser mais igualitária do que a pura espontaneidade da agregação de
vontades individuais através de telas de computador. A justificativa da
mediação política é corrigir os vieses que estão na sociedade e nos
sistemas informatizados: a defesa dos interesses que não podem se fazer
valer em uma sociedade entendida como o choque e o combate espontâneo
das forças em jogo, onde costumam ganhar, que casualidade, os que têm
outro tipo de poder.
P. O senhor afirma que a categorização esquerda-direita também responde a uma simplificação da complexidade ideológica.
R.
O que não significa que não possamos continuar utilizando-a e que não
entendamos todos perfeitamente o que queremos dizer quando nos referimos
à esquerda e à direita. Primeiro, precisamos pensá-la com um pouco
menos de profundidade. Segundo, não se pode entender como a clássica
contraposição Estado-mercado, da
qual viemos. E terceiro, terá que conviver com outros eixos de
confronto porque não são os únicos que funcionam na sociedade.
P. Dizer que a direita e a esquerda já não existem costuma ser um argumento de direita?
R.
Uma pessoa que o diz costuma refutar a politização das coisas. E a
despolitização das coisas costuma beneficiar os que já têm poder.
P. O independentismo é uma solução simples em meio a esse mare-magnum de complexidade?
R.
É uma opção pessoal cuja plausibilidade aumenta na medida em que o
sistema político é incapaz de canalizar com uma lógica democrática,
deliberativa, de negociação, reivindicações fortes de identidade
plurinacional.
P. A questão da Catalunha é um problema complexo abordado com muita simplicidade?
R. Sem dúvida. Falei com muitos líderes políticos sobre a Catalunha
imaginando qual seria uma solução razoável praticável para o conflito
catalão. Do ponto de vista teórico não há grandes dificuldades. Bastaria
pensar de que modo a democracia se realiza em um sistema político
composto, como o que temos. Pensar que a unidade de que se fala na
Constituição é compatível com uma redistribuição diferente do poder.
Idealizar mecanismos de reciprocidade, em virtude dos quais a cessão de
uma parte seja compensada com a cessão de outra, e gerar um marco de
confiança para uma negociação. O grande problema é quem o faz: quem tem
liderança suficiente nos dois mundos, em um momento em que, além disso,
os tea partys são numerosos, para explicar aos próprios que existem
coisas melhores do que uma vitória. Por exemplo, um grande acordo.
O problema do conflito catalão é quem tem liderança suficiente nos dois mundos para resolvê-lo
P. As tensões territoriais estão na Catalunha, mas também em León e em Teruel. O Estado-nação está desmoronando?
R.
No livro o que apresento é que temos que conceber os espaços políticos
de uma maneira mais poliárquica. No conflito catalão há uma pressão
porque não existe nenhuma assimetria em relação a outras comunidades
autônomas, algo tremendamente disfuncional, porque não haverá uma
solução na Catalunha se não existir uma especificidade reconhecida
constitucionalmente. Depois vêm os casos como Teruel Existe e a Espanha
Esvaziada. E Madri, como grande centro de sucção de recursos e com
certas formas de competitividade de outros centros alternativos, como Barcelona,
Valência, Sevilha e Bilbao. Estamos realmente diante de uma definição
do espaço no qual queremos viver e isso, em si mesmo, não me parece um
problema. Vê-lo com uma certa displicência, como se fosse uma espécie de
retorno do tribalismo e de rebelião das províncias, me parece que
reflete uma maneira muito elitista e muito madrilenha de ver as coisas.
Isso dito por uma pessoa que gosta muito e sente-se muito bem em Madri.
Madri é o exemplo de um centro em uma sociedade que já não pode se organizar a partir de um centro
P. Há uma disputa entre a cidade-Estado e a nação-Estado?
R.
Sem dúvida. Madri é um exemplo de um centro em uma sociedade que já não
pode se organizar a partir de um centro. A única maneira de se
reorganizar a partir de um centro é fazê-lo de maneira tremendamente
disfuncional e tremendamente desigual. (El País).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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