O mundo vira outro e a vida melhora consideravelmente quando recuperamos o poder do espanto – para os que não o perderam para sempre, claro. Paulo Polzonoff para a Gazeta do Povo:
Na
minha adolescência, vivi um período obcecado pela morte. Li todos
aqueles poetas românticos que morreram de tuberculose, visitava
cemitérios, fechava os olhos e tentava me imaginar para além do momento
derradeiro. Bem cedo eu encarei o abismo e o abismo me encarou.
Aos
poucos, a obsessão perdeu força e virou apenas um interesse. Quase um
passatempo. Às vezes eu estava assim fazendo algo bem à toa (admirando
um selo do Burundi) e a imagem da morte me vinha à tona num átimo – e
desaparecia. Nem todas as visitas, porém, foram tão rápidas e tão
etéreas. Houve mais de uma ocasião em que a Indesejada se sentou ao meu
lado no sofá e propôs: agora vamos conversar?
Para
a surpresa de ninguém, nessas ocasiões eu aceitava o convite. E
ficávamos lá eu e a Dita-cuja papeando, ela querendo saber mais de mim
do que eu dela – o que é deveras curioso. E pode ficar tranquilo que não
vou, aqui, evocar a cena-clichê do homem que joga xadrez com a Fadada.
Até porque como enxadrista tenho a mania de sair atacando a esmo, como
se minhas peças levantassem bracinhos para o ar e saíssem gritando
ensandecidas.
Mas
onde é que eu estava mesmo? Ah, sim! (É que chegou meu almoço). Eu
estava falando das minhas conversas com a Definitiva. Algumas vezes,
esses diálogos se transformavam em sonhos que, por sua vez, davam
origens a longos textos que jamais escrevi. Eram histórias que tinham
como ponto de partida sempre uma mesma constatação: então é assim.
Então é assim:
Se
não me falha a memória falha, havia até um projeto literário envolvendo
a epifania pós-morte. Eu pretendia, ou acho que pretendia, explorar as
várias formas como as pessoas imaginam esse “momento pós-tempo”, de
acordo com a religião. E até mesmo de acordo com o ateísmo e
agnosticismo. Ah, ficava (e ainda fico) imaginando a surpresa de um ateu
ao se deparar com o rosto de Deus!
“Então
é assim!” será a primeira coisa que falarei ou pensarei depois que
morrer e me vir num Paraíso cheio de casinhas brancas habitadas por
gargalhadas e com ruas ladeadas por postes esculpidos por Bernini, de
onde jorra eternamente a voz de Ella Fitzgerald cantando Irving Berlin.
Ou melhor, seria a primeira coisa que aquela porção jovem de mim falaria
ou pensaria. Porque a porção adulta faz uma ideia bem distinta de tudo
isso.
A
porção adulta, com o mindinho mergulhado na velhice, vê que a
mortezinha o acompanha desde o nascimento e tem se revelado a cada
novidade que a vida lhe apresenta. Assim que saí do útero materno, o
“então é assim!” se manifestou naquele berreiro que se espalhou por
todos os andares do hospital São Vicente. No primeiro beijo e nas
últimas páginas de um livro policial, na primeira noite com a mulher ou
nas últimas linhas da crônica diária. Quando se descobre ou se faz algo,
o espanto toma conta do ser, que morre um pouquinho. Para ressuscitar
logo em seguida.
O
mundo vira outro e a vida melhora consideravelmente quando recuperamos o
poder do espanto – para os que não o perderam para sempre, claro. Não
me refiro ao espanto indignado de quem morre e se descobre no inferno.
Falo do espanto curioso de quem percebe o caráter primeiro ou último de
todas as ações humanas.
Então
é assim uma injustiça. Então é assim o esquecimento. Então é assim a
maldade. Então é assim a mentira. Então é assim a fome. Então é assim a
tirania. Então é assim a abundância. Então é assim o medo. Então é assim
a doença. Então é assim a cura. Então são assim os dias. Então é assim
que se chega ao fim.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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