A pandemia tem sido um bode expiatório recorrente, utilizado por muitos governos para abrir as torneiras dos gastos. Ubiratan Jorge Iório para a Oeste:
Há
poucos dias, o presidente Joe Biden declarou, em meio a uma chuva de
críticas ao antecessor Donald Trump e aos republicanos, que não pode
afastar a possibilidade de um calote na dívida do país. Enfatizou que é
necessário aumentar o limite de endividamento do Tesouro, que demarca
até quanto pode tomar emprestado para honrar suas obrigações, como
pagamentos de juros e benefícios sociais.
Devemos
recordar que em 2019, no governo Trump, esse limite foi suspenso por
dois anos, prazo que expirou no último dia 31 de julho. Os debates
quanto à elevação do teto estão acalorados, mas são antigos: em 2011,
durante o governo de Obama, as discussões foram tão intensas que a
agência de classificação de riscos Standard & Poor’s chegou a
rebaixar o grau de parte da dívida do Tesouro.
Biden
tenta justificar a necessidade de aumentar o limite argumentando que o
profundo corte promovido pela reforma tributária de 2018, de Donald
Trump, reduziu a arrecadação, especialmente a do imposto corporativo. E
criticou a recusa dos republicanos em apoiar o estouro do teto: “Acho,
francamente, que é hipócrita, perigoso e vergonhoso. A obstrução e a
irresponsabilidade deles não têm limites, especialmente porque estamos
tentando sair dessa pandemia”.
Na
verdade, trata-se de uma velha manobra política, que os nossos avós
classificavam como tentativas de tapar o sol com uma peneira. A verdade é
que ele e seus conselheiros econômicos, alojados na ala radical do
partido, ao que tudo indica, acreditam no Papai Noel. A pandemia tem
sido um bode expiatório recorrente, utilizado por muitos governos para
abrir as torneiras dos gastos. Sobre esse tema, é oportuno fazer duas
perguntas: caso o governo não seja autorizado pelo Congresso a furar o
teto, o calote é mesmo iminente? Quais podem ser as reais intenções
escondidas em sua ameaça com jeito de chantagem?
Vamos
à primeira. Qual o porcentual de dívida pública/PIB suportável? Ou
seja, em que porcentual o risco explodiria, acendendo a luz vermelha e
anunciando o tal calote? A resposta é uma só: não sabemos, porque ela só
pode ser dada pelo mercado. E até o momento o mercado também não sabe
que limite é esse. O que se presume é que existe um limite além do qual
os tomadores de títulos do Tesouro não mais estarão dispostos ou capazes
de absorver os papéis, o que leva em conta fatores como diferentes
taxas de inflação monetária e de preços, estruturas de taxas de juros e
de tributos e expansão de gastos públicos. Mas ninguém sabe qual é esse
limite, até porque é fortemente influenciado pela subjetividade e pela
incerteza genuína, inerentes a todas e quaisquer expectativas.
A ameaça de uma crise mundial sem precedentes
É
óbvio que o elevado nível de endividamento atual não deixa de ser
perigoso, bastando lembrar que é bem maior do que o da Grécia em 2010,
quando aquele país teve de pedir socorro ao FMI para evitar o default
(calote). Porém, estamos tratando da maior economia do mundo e cujo
governo emite e controla dólares. Por isso, a maior preocupação não deve
ser a de tentar identificar o nível crítico de endividamento, mas sim a
de que esse governo está acumulando dívidas mais rapidamente do que
aconteceu em tempo algum. E, o que é realmente aterrador, está preso às
propostas de uma teoria econômica insana. O que, com certeza absoluta,
agravará o problema.
O
fato é que a saúde da economia norte-americana é delicada e está
exigindo cuidados. E, quando ampliamos o campo de visão para os outros
países, o diagnóstico é o mesmo, em escala maior: a economia mundial
está doente. Os governos estão extremamente endividados, os bancos
centrais vêm expandindo a oferta de moeda de maneira assustadora
enquanto mantêm as taxas de juros extremamente baixas. E os gastos
públicos vêm crescendo também abissalmente.
Não
se pode negar que a pandemia tem alguma culpa no cartório, porque
encorajou os economistas intervencionistas radicais a saírem dos
armários. Mas devemos frisar que essas políticas já vinham sendo
adotadas havia anos. A pandemia apenas as intensificou. A rigor, ninguém
em sã consciência pode afastar completamente a possibilidade de uma
crise mundial sem precedentes.
Eis
um resumo da situação dos Estados Unidos: a relação dívida pública/PIB
está em pouco mais de 107%. A dívida privada como proporção do PIB pulou
de 218% em 2019 para cerca de 235% em 2020. A taxa de juros dos fundos
federais está há bastante tempo em 0,5%, um nível extremamente baixo. Os
gastos públicos como proporção do PIB aumentaram recentemente de quase
36% para 44%. A expansão monetária (medida pelo M2) promovida pelo Fed
também é aterrorizante há tempos. A boa notícia é que, como no mundo
inteiro, o PIB dos Estados Unidos vem se recuperando depois do terremoto
de 2020. Mas também não se pode garantir que essa recuperação seja
sustentável.
Quanto
à carga tributária, com a reforma promovida em 2018 por Trump, a
alíquota do imposto corporativo caiu de 35% para 21% e a do Imposto de
Renda sobre as pessoas físicas de quase 40% para 37%. Algo extremamente
positivo sob o ponto de vista dos economistas conservadores, embora os
que assessoram Biden não pensem assim. Adicionalmente, muitos
economistas vêm afirmando que a sugestão de aumentar impostos para
financiar seus planos de viés socialista será incapaz de aumentar a
arrecadação ao ponto de cobrir a cratera dos gastos.
O economicídio
Passemos
então à segunda pergunta: o que de fato se esconde nas ameaças de Biden
e de suas imprecações contra os adversários políticos? Quando
indivíduos e empresas dão calotes, o prejuízo fica para os seus
credores. Mas, e quando é o governo que “dá o cano”? E quando esse
governo é o dos Estados Unidos da América? Nesse caso, perdem não só os
seus credores (quem comprou títulos públicos), mas todos os americanos e
— dada a importância do país — o mundo inteiro. Mas, infelizmente,
ainda existem economistas que, em pleno 2021, acreditam que governos
pairam acima de qualquer desconfiança. E que são ungidos das três
imunidades: fiscal para gastar e se endividar, tributária para subir
impostos e monetária para fabricar inflação.
Esses
economistas descendem de uma relação adúltera entre marxismo e
keynesianismo radical. Gosto de classificá-los como exterminadores da
austeridade. Refiro-me aos proponentes do que hoje se denomina Teoria
Monetária Moderna (TMM), um conjunto de ideias associadas ao economista
neomarxista polonês Michal Kalecki (1899-1970). Essas ideias são
defendidas por economistas próximos ao presidente Biden, ligados à ala
mais à esquerda do Partido Democrata.
A
TMM, na realidade, não passa de um conjunto bastante confuso de
antiquíssimas mesmices exibidas vaidosamente depois de uma cirurgia
plástica malfeita. Nem mesmo os seus defensores têm sido capazes de
explicá-la satisfatoriamente. A rigor, trata-se de uma teoria falsa, com
visão rudimentar dos fenômenos monetários e que nada tem de moderna.
Pelo contrário, é mais velha do que os ancestrais mais remotos de
Matusalém.
Com
alguma boa vontade e muita paciência, é possível identificar a essência
dessa aberração em quatro pontos. O primeiro é a afirmativa de que
nenhum governo pode se tornar insolvente. Por conseguinte, não haveria
nenhum problema gastar continuamente mais do que arrecada, aumentando a
sua dívida permanentemente. Porque sempre poderia monetizar as suas
necessidades de financiamento. Em linguagem popular, imprimir moeda. Em
segundo lugar, a TMM responde à crítica de que essas políticas de inflar
moeda causam aumentos de preços. Gaguejam que a existência de “recursos
ociosos” garante que não há fundamento nessa preocupação.
O
terceiro ponto: em certos casos seus defensores admitem (sempre
relutantemente) a possibilidade de que a expansão monetária pode
provocar aumentos de preços. Isso se daria, segundo eles, apenas na
inexistência de desemprego de recursos. A solução que eles apresentam
para impedir esses aumentos é aumentar a carga tributária. Por fim, para
a TMM, o papel dos impostos não é arrecadar fundos para os gastos do
governo (esse dever seria dos operadores das máquinas impressoras), mas
enxugar moeda da economia, para conter a demanda e evitar altas de
preços. Enfim, trata-se de uma barafunda profunda, de uma balbúrdia
estapafúrdia, de um verdadeiro economicídio.
Para
resumir, de acordo com a Teoria Monetária Moderna, o governo pode e
deve imprimir moeda para bancar os seus gastos e, se isso pressionar os
preços para o alto, deve retirar dinheiro do setor privado, aumentando
os impostos. Esses truques, desmascarados por uma longa história de
fracassos, manteriam os juros permanentemente baixos. A dívida pública
seria controlada por todos os séculos dos séculos. O motor perpétuo do
crescimento da economia estaria ligado, e a inflação de preços proscrita
por toda a eternidade.
Trocando
em miúdos, os governos devem explodir os gastos, ignorar que a dívida
interna e a expansão monetária são problemas. E, se aparecer alguma
“inflaçãozinha” para atrapalhar, é só meterem a mão nas contas bancárias
dos “contribuintes”, ameaçando-os de prisão caso não aceitem o assalto.
Em suma, a TMM acolhe amorosamente os erros rudimentares da gastança, e
exila impiedosamente os acertos exemplares da poupança.
O abandono da alma americana
Ora,
nenhum economista despido de militância política (portanto, livre para
pensar por conta própria) admite que qualquer governo que toma
empréstimos em sua própria moeda não deve preocupar-se com déficits e
dívidas, apenas porque tem poder para imprimir moeda e aumentar impostos
para financiá-los. Há falhas muito graves na TMM, das quais três saltam
aos olhos:
(a)
existem fartas evidências de que, quando o governo expande
excessivamente a oferta monetária, o impacto sobre os preços é sempre
inflacionário e, dependendo das circunstâncias, hiperinflacionário. Como
atestam, por exemplo, os casos da República de Weimar, do Zimbábue, da
atual Venezuela e, possivelmente, da Argentina em futuro próximo;
(b)
mesmo se as recomendações de política econômica dessa teoria fossem
corretas, o fato é que nenhum governo, ainda que totalmente
centralizado, sabe exatamente qual é a taxa de desemprego natural ou
estrutural, nem quanto e como gastar e tributar e nem quanto emitir de
moeda, conhecimentos factíveis apenas — e talvez — no mundo da lua em
que vivem os economistas de esquerda;
(c)
os eventuais benefícios de políticas públicas agressivas de emprego
limitam-se apenas ao curto prazo, como a história da social-democracia
atesta. No longo prazo, a conta sempre chega e quem é chamado a pagá-la
são os cidadãos (ou seus descendentes) e as empresas privadas. O que é
imoral. Equivale a passar a vida se endividando. E, ao despedir-se dela,
e da vida, dizer aos filhos e netos: “Adeus, deixo todas as dívidas
para vocês pagarem…”
Devemos
ressaltar que, além da resistência dos republicanos quanto à elevação
do teto do endividamento para sustentar essas políticas, Biden tem
encontrado relutância em seu próprio partido. Especialmente para aprovar
dois projetos tidos como fundamentais pelo seu governo: um, para gastar
US$ 1,2 trilhão em infraestrutura, e o outro, com valor inicial de US$
3,5 trilhões, em medidas de ampliação da rede de “proteção social”. E
também para fortalecer ações para salvar o clima apocalíptico decretado
pelo Grande Irmão globalista e suas dramáticas ONGs do clima.
A
ala radical dos democratas (uma espécie de PT e seus satélites que se
expressam em inglês) vincula a aprovação do projeto de infraestrutura,
já aprovado no Senado, ao projeto social e climático. Mas os democratas
conservadores — que, pelo menos, sabem fazer contas — questionam o valor
de US$ 3,5 trilhões e propõem cortes profundos na proposta. Só para
darmos uma pálida ideia de até onde podem ir os exterminadores da
austeridade, dentre os gastos previstos pela atual administração, há
itens que fariam inveja aos nossos políticos esquerdistas e seus
sindicatos, “coletivos” e “entidades”, tais como “faculdades
comunitárias” e pré-escola universal, ambas “de graça”.
A
verdade é que economistas e políticos simpáticos ao socialismo sofrem
da mesma doença crônica: são especialistas contumazes em pegar frutas no
terreno dos outros, mas detestam a atividade trabalhosa de plantar
qualquer árvore. É evidente que o problema do endividamento é muito
sério nos Estados Unidos e em todo o mundo. Mas é apenas um sintoma de
outro, muito maior: o abandono gradual e lamentável (e que vem se
acentuando crescentemente) da própria alma norte-americana. O abandono
do espírito da liberdade, das práticas da economia de mercado e dos
valores morais, entre os quais a poupança, o esforço e o trabalho duro.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.
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