Dá para sentir que é uma encrenca tremenda: discussões raciais envolvem mundo artístico, com resultado obviamente explosivo. Vilma Gryzinski:
Para
quem ainda nem se deu conta da existência do Little Mix, a discussão
envolvendo uma de suas integrantes, Jesy Nelson, pode soar misteriosa.
A
coisa trata de um comportamento chamado ‘blackfishing”, expressão
inventada para descrever quem, tendo a tez clara, tenta imitar o estilo e
o balanço de artistas negros.
É
disso que a cantora Jesy Nelson foi acusada ao se desligar do grupo e
se jogar na carreira solo (“Um dos mais desastrosos lançamentos da
memória recente”, na definição algo acrimoniosa do Independent).
Para
muitos fãs do grupo pop britânico de quatro garotas (uma loira, uma
morena etc etc), foi até uma surpresa: muitos achavam que Jesy era a
“morena”, ou racialmente mista. Os cabelos cacheados e até,
possivelmente, um toque mais carregado de maquiagem criavam essa
impressão.
Quem levantou a questão do “blackfishing” foi uma ex-colega de banda, Leigh-Anne Pinnock, legitimamente mestiça.
Nicki
Minaj, que participa do lançamento de Jesy, entrou na história – e dá
para imaginar a quantidade de palavras censuradas que explodiram nas
redes sociais.
Foi
nelas, claro, que surgiu o fenômeno “blackfishing”, com muitos milhares
de jovens imitando a “atitude” de artistas negras no Instagram. Nos
casos mais extremos, recorrendo até a cirurgias plásticas. Os
preenchimentos labiais não contam porque já viraram padrão em países
como a Inglaterra, sob a influência das irmãs Kardashian/Jenner, cujas
saliências exacerbadas por procedimentos também reproduzem padrões
associados a corpos negros curvilíneos.
O
fenômeno de alguma maneira espelha casos como o da americana Rachel
Dolezal, branquíssima nativa de Montana que criou uma vida como se fosse
negra e fez carreira na universidade e na tradicional Associação
Nacional para o Avanço das Pessoas de cor.
Mesmo
depois que foi exposta, Rachel, com todo direito garantido pela
flexível sociedade americana, continuou a levar a vida que escolheu e
mudou o nome para Nkechi Amare Diallo.
Se
uma professora universitária ou uma cantora se apresenta como se fosse
negra, isso é ofensivo ou deveria ser celebrado como uma manifestação de
que “a imitação é a mais sincera forma de elogio”? Depois de tanto
tempo em que crianças e jovens negras não tinham figuras públicas para
se espelhar segundo sua própria etnia, não é bom que agora ocorra o
oposto?
Claro
que num mundo em que as questões identitárias se tornaram tão
proeminentes, isso não acontece. As “brancas negras” são acusadas de
apropriação cultural (um conceito que, se fosse aplicado ao Brasil,
levaria ao fim de praticamente todas as manifestações culturais).
Mais
complicados ainda são casos em que atores interpretam personagens de
outra etnia. Aconteceu com a peça Uma Escrava Chamada Esperança,
protagonizada pela ex-BBB Gyselle Soares. Houve protestos contra o
“embranquecimento” da personagem, uma escrava que protestou em carta ao
governador da época contra os suplícios que sofria e veio a se tornar
advogada.
Um
caso similar, guardadas as diferenças, está se desenrolando nos Estados
Unidos. Personalidades artísticas de origem judia reclamam quando
personagens judeus são interpretados por atores de outro perfil.
Um caso específico envolve o ator Tony Shalhoub (o veterano Monk da série de mesmo nome).
O
ator é de família libanesa, árabe e cristã, e interpreta o personagem
Abe Weissman na série The Marvelous Mrs. Meisel. Quando surgiu a
questão, ironizou que, como ator, foi treinado para não interpretar a si
mesmo, mas, justamente, personagens.
Para que o argumento tivesse validade, seria preciso admitir que atores judeus não poderiam interpretar não-judeus.
O
que seria de Espártaco sem Kirk Douglas (Issur Danielovich, filho de
imigrantes judeus da então Bielo Rússia)? Ou de seu companheiro de filme
Tony Curtis (originalmente, Bernard Schwartz)? Poderia o tão Wasp
capitão James Tiberius Kirk , de Jornada nas Estrelas, ser confiado a
William Shatner, que aos 90 anos voltou a ser notícia pela emocionante
voltinha espacial que deu na nave de Jeff Bezos?
Todo
mundo entende que quando atores negros interpretam aristocratas
ingleses na série Bridgerton a intenção é fazer um manifesto
anti-racista, invertendo expectativas.
O
ponto de partida foi a especulação, sem nenhuma base, de que a rainha
Charlotte, personagem histórico que aparece na série, seria descendente,
em nona geração, de Afonso III de Portugal e sua amante moura,
Madragana.
A
muito germânica Sophia Charlote de Meklemburg-Strelitz, que se casou
com George III, o “rei louco”, com apenas dezesseis anos, foi retratada
em alguns quadros com “traços mulatos”, segundo a descrição de seu
médico, Christian Friedrich Stockmar.
“Era famosamente feia”, resumiu Desmond Shawe-Taylor, ex-curador da coleção real.
Na
ficção de Bridgerton, nada disso aparece. Ao contrário, o ator
Regé-Jean Page, inglês de mãe do Zimbabwe, esfacelou corações no planeta
inteiro como o arrasadoramente belo e romântico duque de Hastings.
Que
tenha sido convincente como um duque negro é uma prova do poder da arte
da interpretação – e ninguém reclamou que ele praticamente reencarnou
grandes galãs brancos, de Clark Gable em E O Vento Levou a Colin Firth
em Orgulho e Preconceito.
Duques
negros ou cantoras brancas que copiam o estilo black podem relaxar os
estereótipos, o que é sempre bom, mas definitivamente não vão encerrar a
discussão.
BLOOG ORLANDO TAMBOSI
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