MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

quarta-feira, 13 de outubro de 2021

A tirania do cancelamento foi longe demais

 



Como o Talibã, destruindo templos cristãos e budistas, as patrulhas "woke" não deixam pedra sobre pedra. Dagomir Marquezi para a revista Oeste:


Era uma vez uma linda princesa. No seu primeiro aniversário, três fadas compareceram à festa e deram-lhe presentes. Mas uma bruxa malvada e invejosa lançou uma maldição à aniversariante: quando a pobrezinha entrasse na vida adulta, espetaria o dedo em uma roca de fiar e cairia num sono profundo. E só despertaria com o primeiro beijo de amor.

E assim aconteceu. A Bela Adormecida ficou desfalecida por muito tempo, cuidada pelos bichinhos da floresta. Mas um formoso príncipe encantado enfrentou uma barreira de espinhos e conseguiu chegar até a princesa. O herói apeou de seu cavalo branco, curvou-se respeitosamente e beijou com delicadeza os pálidos lábios da linda princesa. Ela abriu os olhos para alegria do dedicado príncipe. Os passarinhos chilreavam de felicidade, os esquilinhos corriam entre os galhos, flores multicoloridas caíam das árvores para abençoar a vitória do amor mais puro e verdadeiro. Mas, para surpresa de todos, a princesa reagiu com indignação:

— Quem te deu autorização para me beijar?! Meu corpo, minhas regras! Hashtag não é não! Isso é um verdadeiro estupro contra uma mulher em situação indefesa! Eu estava desacordada e você abusou de mim. Além do mais, quem disse que eu me casaria com um homem branco, hétero, representante de um passado colonial e racista?!

Em seguida, a princesa voltou para seu castelo e usou sua influência para cancelar o príncipe, cortar suas fontes de financiamento e bloquear sua participação nas redes sociais.

Moral da história: a militância “woke” (de “despertar”) já foi longe demais. E poderá seguir em frente, nos levando a uma era de trevas e destruição cultural jamais vistas. A nova versão da história da Bela Adormecida “vítima” é só um dos muitos sinais da violência desses milicianos do controle do pensamento.

A tirania do cancelamento é orgânica. Não depende de uma força estatal para ser implementada. Não necessita de censores, de polícias ou prisões. Basta um patrulheiro ideológico que denuncie, e um produtor cultural que obedeça. E também de uma população que se omita.

Os canceladores ainda não conseguiram fazer muitos estragos na chamada cultura erudita — o que não quer dizer que não chegarão lá. O alvo fácil por enquanto é a cultura pop. Pela sua fluidez, é mais fácil apontar detalhes que eles consideram inaceitáveis num filme, numa série ou numa história em quadrinhos do que num romance de Charles Dickens ou José de Alencar. Para os cidadãos do século 21, a cultura pop está muito mais próxima. É nossa zona de conforto.

“É uma terrível tragédia, meu amor”

O caso de Pepe Le Gambá mostra a que ponto de ridículo essas patrulhas de censores podem chegar. E o poder absurdo que adquiriram. Pepe Le Gambá (Pepé Le Pew, no original) foi criado em 1949 na produtora Warner Brothers por três grandes gênios: os diretores Chuck Jones e Mike Maltese e o dublador Mel Blanc. O personagem ganhou um Oscar de melhor curta de animação logo em sua estreia.

Como todo personagem de desenho animado, Pepe funciona à base de repetição. Ele costuma conhecer uma gatinha negra de longa cauda como a sua. Um acidente faz com que caia tinta branca no dorso da gata, e Pepe acha que ela também seja gambá. Ele então cita frases românticas com sotaque francês recheadas de “mon amour” e “ma petite fleur”. Tudo o que a gatinha quer é fugir do cheiro do gambá. E, quanto mais ela foge, mais Pepe acha que está apaixonada por ele.

Pepe Le Gambá

Com seus cenários parisienses, Pepe Le Gambá ensinou a gerações de meninos o ridículo que é insistir na conquista de uma mulher que não está a fim de você. Por reflexo, aprendemos desde criança que forçar uma mulher a nos aceitar cheira mal. Como dezenas de outros personagens de animação da Warner, Pepe tinha uma participação garantida no filme Space Jam: um Novo Legado, estrelado pelo astro do basquete LeBron James. Até que alguém denunciou que o gambá romântico divulgava uma “cultura do estupro”.

Quem fez essa denúncia? Que pessoa? Que grupo? Que ONG? Ninguém sabe. O que sabemos é que a poderosa Warner Brothers, parte de um dos maiores conglomerados de mídia do mundo, a Time Warner Inc, obedeceu de joelhos e cabeça baixa a essa pessoa ou grupo de pessoas. A aparição de Pepe Le Gambá em Space Jam 2 foi cortada. E a empresa já anunciou que o gambá não irá aparecer em nenhuma outra produção envolvendo os personagens de animação da Warner. Foi assassinado aos 72 anos. Em sua lápide, poderiam colocar a frase: “C’est une terrible tragédie, mon amour”.

Logo que a Warner declarou sua decisão, apareceram alguns colunistas, jornalistas e personalidades ditas “progressistas” apoiando o cancelamento do gambá. Outras poucas vozes protestaram. Nunca houve uma pesquisa de opinião sobre se Pepe Le Gambá era realmente um criminoso ou se merecia outra chance. A vontade de seus canceladores, seja lá quem fossem eles, foi acatada sem discussão. Agora, só falta retirar seus 18 desenhos animados dos catálogos de streaming. E das próximas edições em DVD, blu-ray ou seja lá qual for a próxima mídia física. Como o Talibã, destruindo templos cristãos e budistas, as patrulhas “woke” não deixam pedra sobre pedra.

Snowflake e Safespace

A Disney, rival da Warner, é outro campo de tiro livre para essas patrulhas. Muito provavelmente seus boards decisórios estão completamente aparelhados por canceladores de fala mansa e sorriso de empatia no rosto. A voluptuosa Jessica Rabbit, do filme Uma Cilada para Roger Rabbit, vai trocar seu figurino de estrela de Hollywood dos anos 1940 por uma roupa mais masculinizada de detetive. A roupa sexy da princesa Leia (de Star Wars) foi retirada de catálogo. Mulheres femininas estão vetadas.

Jessica Rabitt

Parte da corporação Disney, a Marvel virou um laboratório de experimentos “woke”. Super-heróis que fazem parte da mitologia pop global há 60 anos estão sendo abatidos sem piedade. O personagem Iron Man (Homem de Ferro) virou uma mulher negra de cabelo afro chamada Riri Williams e agora atende pelo nome de Ironheart. O Homem-Aranha não é mais Peter Parker. Foi trocado pelo negro com sangue mexicano Miles Morales.

Riri Williams agora se chama Ironheart

Jane Foster, a namorada cientista de Thor, usou o martelo Mjolnir e se tornou ela mesma a deusa do trovão, destruindo a milenar mitologia nórdica no processo. A identidade secreta de Hulk deixou de ser nosso velho conhecido Bruce Banner e agora atende pelo nome de Amadeus Cho, um cientista de origem coreana. Eles poderiam simplesmente ter criado novos personagens com essas características. Não era suficiente. Era preciso destruir a herança deixada por Stan Lee, o grande gênio da Marvel. Eles precisam arrasar nossos sonhos e memórias.

Jane Foster, a Thor mulher.

A criação “woke” mais radical da Marvel é um casal de super-heróis dedicados a combater o bullying. Eles atendem pelos nomes de Snowflake e Safespace. Que são dois termos (“floco de neve” e “espaço seguro”) usados para definir uma geração marcada pela fragilidade e pelo medo de enfrentar a idade adulta. Snowflake é uma menina que se veste de azul. Safespace é um menino que se veste de rosa. Os dois usam o mesmo corte de cabelo. São “não binários”. Ainda não se sabe se, ameaçados, correrão com seus iPhones e iogurtinhos para debaixo do edredom. Snowflake e Safespace fazem parte de um novo universo Marvel no qual só existe um personagem branco — o vilão.

Snowflake e Safespace

“Lendas dos quadrinhos como Stan Lee e Hayao Miyazaki eram guiados pela sua imaginação, não por conceitos e clichês políticos”, escreveu o professor indiano Abhijit Majumder no site Firstpost. “Francamente, parece que os (novos) personagens são criados numa linha de produção, tirados diretamente do PowerPoint da equipe de marketing da Marvel, com o pé da imaginação firmemente acorrentado a chavões como ‘diversidade’, ‘multirracial’ e ‘não binário’.”

O problema dessa cultura de cancelamento é que ela tem porta de entrada, mas não tem porta de saída. É uma rodovia expressa para o inferno da ignorância e do autoritarismo. Eles impõem uma realidade que não faz sentido fora das bolhas que frequentam. Hoje foi Pepe Le Gambá. Quem vai ser amanhã? Que perguntas serão feitas por esses censores empoderados?

Por que os zumbis de Walking Dead têm a pele escura? Tom e Jerry não provocam a cultura do ódio? O elenco de Friends é adepto da supremacia branca? A série chamada Mad Men não poderia ser trocada por outra chamada Mad Women (ou Mad Non Binary)? 101 Dálmatas seria a glorificação de uma raça pura (de cães)? Tarzan, esse velho símbolo do colonialismo, não deveria ser substituído por um negro africano nativo? O Rei Leão, título que simboliza o poder machista, não deveria ser cancelado e substituído por uma Rainha Leoa? Mary Poppins não representa a submissão profissional das mulheres? O Corcunda de Notre-Dame não seria uma ofensa aos deficientes físicos?

São perguntas estúpidas, todas elas. Mas provavelmente estão sendo formuladas por essa elite oculta, disposta a transformar nossas vidas numa chatice sem fim. Elas serão ouvidas por quem manda na cultura. E provavelmente obedecidas em todos os detalhes nesse pesadelo “woke” que estamos vivendo.

Eles só agem em países democráticos. A ditadura do Partido Comunista chinês anunciou que todos os personagens de games produzidos no país deverão ter “gênero definido”. Basta que um único personagem não possa ser identificado como homem ou mulher para que o projeto todo seja vetado. Mas a China é respeitada pelos “wokes” por ser “anti-imperialista”. “Wokes” não se importam com o que acontece em países regidos por ditaduras. Danem-se as mulheres e os homossexuais do Irã. Eles têm coisas mais importantes a fazer, como banir do mundo um gambá de sotaque francês.

A situação só tende a piorar, se não houver resistência. Enquanto essa destruição for encarada como algo inevitável, vai continuar. É elitista, artificial, contraditória ao máximo. Mas está se impondo e se espalhando, alimentada por nosso silêncio.

“Esta é a vingança da esquerda que não consegue se eleger”, resumiu Abhijit Majumder no Firstpost. “Por meio de seu controle da mídia e da academia, ela tem forçado sua agenda de constranger pelo menos a elite influente para que seja desenraizada, desfigurando suas próprias raízes e cultura, fundindo toda a diversidade em padrões, enfraquecendo a cola que une nações e democracias.”
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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