Deboche, pedidos de cabeças de colegas na bandeja e afins inundam o pensamento público hoje, a começar por Bolsonaro. Luiz Felipe Pondé via FSP:
A
molecagem como método de pensamento e de expressão tem se imposto ao
pensamento público. Egressa das redes sociais, ela contamina cada vez
mais a mídia profissional.
O
deboche, a retórica, as armadilhas em entrevistas, o pedido de cabeças
de colegas na bandeja e outras coisas do tipo inundam o pensamento
público hoje. Um fenômeno que só reforça essa percepção é a saturação na
mídia de militâncias em geral. Molecagem e militância têm se dado muito
bem.
O espectro de temas em que a molecagem como método age é largo. A começar por Bolsonaro e seus asseclas. “Não sou coveiro” e “país de maricas” são exemplos de molecagem no tratamento da pandemia. Mas há exemplos menos óbvios —à direita ou à esquerda, a guerra cultural é, basicamente, o universo dos moleques.
No
contexto do debate sobre escravidão e racismo, por exemplo, vale notar
que o debate exige cuidado e corre risco de desbunde. A guerra cultural,
como toda polarização típica do ambiente linguístico das redes sociais,
escorrega facilmente para usos retóricos de temas que são complexos.
A
direita, como sempre, tende a tecer elogios do capitalismo e da
meritocracia onde não é possível fazer isso. No que tange à escravidão, o
papel do capitalismo dos séculos 18 e 19 foi sempre o de colocar os
africanos no lugar de objetos, com consequências de cauda longa, mesmo
que algumas exceções tenham, sim, ocorrido.
Por
outro lado, o uso de uma linguagem um tanto estetizante calcada em
expressões como “nojo”, “vômito” ou “passar mal” revela um parentesco
com a semântica das redes sociais ou do clássico Painel do Leitor desta Folha. Isso nada mais é que o ethos autoritário dos comentários sendo protagonista do pensamento.
No
fundo da molecagem como método há um déficit de discernimento
travestido de crítica. Sem a leveza da ironia, essa retórica inviabiliza
o entendimento da realidade.
Pode-se
criticar duramente posições e pensamentos. O fenômeno da molecagem como
método é de outra cepa, contudo. Uma de suas características é o
recurso do argumento ad hominem temperado com um certo deboche, mesmo
que com um grau de indignação.
O
argumento ad hominem se caracteriza por um ataque à pessoa e não àquilo
que ela apresenta como conteúdo. Trata-se de uma ferramenta largamente
conhecida e praticada. Na linguagem mais popular seria como falar mal de
alguém em vez de se ater ao que esse interlocutor afirma.
A
molecagem ad hominem difere do conhecido argumento ad hominem porque
ela vem carregada do “lugar de fala” das redes sociais, um ambiente em
que raramente a discussão não é ad hominem. E esse ambiente é diferente
dos espaços profissionais anteriores porque o mundo ali se transforma
num grande Twitter de idiotas mal-educados, no qual o recurso do
argumento ad hominem é a regra, portanto, é normalizado como pensamento.
A
molecagem chegou até à mídia científica. A revista científica britânica
Lancet usou termos como “corpos com vagina” para se referir a mulheres.
Pessoas podem sentir o que quiserem em termos sexuais, mas só a
molecagem pode levar a sério a ideia de que mulheres não são mais
mulheres.
A
militância sempre teve vocação à baixaria com metafísica. Com as redes
sociais, esse comportamento vai se tornando a única forma de pensamento
público. Aqui não me refiro apenas à militância de causas importantes.
Refiro-me à militância por escolas sem açúcar, por escolas sem partido, pela proibição de falas do tipo “mulheres menstruam”
ou “mulheres engravidam” ou pelo uso de expressões como “vômito de
bile” no lugar de argumentos. Idiotas, até na mídia, começam a dizer
coisas como “pessoas que menstruam”.
Vejamos
outro exemplo, agora à direita. Você já percebeu que, quando algum
jovem com 30 anos fica muito rico no mercado financeiro ou desenvolvendo
algum produto digital, ele logo fica muito idiota e boçal? Logo
começará a falar em meritocracia, anarcocapitalismo ou libertarianismo.
A
imprensa sempre teve uma vocação reprimida ao ridículo, mas que se
escondia por trás da ideia de busca por audiência. O grande público
sempre teve vocação ao medíocre. Hoje essa ideia se traduz no que
chamamos de engajamento nas redes sociais. A molecagem é uma dessas
formas, para além do bem ou do mal.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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