Eurípedes Alcântara
O Globo
‘Que você viva em tempos interessantes’. Diz-se, sem comprovação, ser essa uma antiga maldição dos chineses lançada sobre seus inimigos, torcendo para levarem uma vida atribulada, brutal e caótica. Praga chinesa ou não, é inegável estarmos vivendo tempos interessantes. Não se passa dia em branco. Somos constantemente confrontados com uma realidade onde tudo o que é sólido se desmancha no ar.
Ora, se deu que chegou, para usarmos uma expressão avoenga e segura, à mesa de Joe Biden, presidente dos Estados Unidos, um currículo com as seguintes qualificações: Saule Omarova, mulher, 54 anos, formada na Universidade Estatal de Moscou, ganhadora da Bolsa de Estudos Lênin; acredita na superioridade do sistema econômico soviético sobre o americano atual; propõe um sistema bancário para os Estados Unidos refeito à imagem do Gosbank, o banco central e única instituição bancária da antiga União Soviética.
FOI INDICADA – Mesmo com um currículo desses, Biden decidiu indicar Saule Omarova para dirigir a OCC, a Controladoria da Moeda, poderoso braço do Departamento do Tesouro encarregado da organização, regulação e supervisão do funcionamento dos 1.200 bancos privados dos Estados Unidos.
“Que você viva em tempos interessantes.” Não é piada. Omarova nasceu no Cazaquistão e se mudou para os Estados Unidos há 30 anos. Ela ainda é nostálgica dos tempos de estudante no regime comunista da União Soviética, também conhecida por muitos americanos como o “Império do Mal”, o arranjo totalitário desmoronado sob o peso de sua própria miséria moral e econômica em 1991, justamente quando a indicada para dirigir a OCC emigrou.
Num artigo recente, Omarova propôs aumentar o intervencionismo do Federal Reserve, Fed, o banco central do Estados Unidos, de modo a se tornar o único destino dos depósitos bancários à vista. Nas palavras dela, essa medida “significaria o fim do sistema bancário dos Estados Unidos como o conhecemos”.
VENEZUELA E CHINA – A depender de Omarova, o Fed passaria a ser “a plataforma pública definitiva para gerar, modular e alocar recursos financeiros”. Omarova cita como exemplos a ser seguidos pelos Estados Unidos a criação de uma moeda digital oficial, “como a Venezuela e a China estão fazendo”.
“A senhora Omarova é a candidata errada para o setor errado, no país errado, no século errado”, resumiu, no editorial, o Wall Street Journal. Em tempos interessantes, é bom refrear os julgamentos morais e tentar entender a realidade pela simplicidade dos fatos. Saule Omarova foi indicada por Biden para dirigir a OCC. Antes de assumir a nova posição, ela precisa passar pela aprovação do Senado, em Washington.
SEM POSSIBILIDADES – Suas chances de assumir o cargo são exíguas, quase inexistentes. Só por um milagre ela conseguiria os votos necessários para sua aprovação num Senado sem maioria clara.
Como pode um jabuti leninista — sem ofensas à senhora Omarova, por favor — ter chegado tão perto de subir ao ponto culminante do posto mais representativo do capitalismo, o sistema financeiro dos Estados Unidos?
A explicação é política, como sempre. Biden é presidente dos Estados Unidos pelo Partido Democrata, com alas ideológicas fortes identificadas com o socialismo. Biden, moderado, precisa satisfazer esses bolsões sinceros, mas radicais do partido.
ACENO AOS RADICAIS – A indicação da revolucionária Saule Omarova para o departamento controlador dos bancos foi um aceno de Biden aos radicais. Um aceno interesseiro. No fundo, Biden deseja mesmo é a recondução pelo Senado de Jerome Powell, indicado por Donald Trump para o comando do Fed.
Powell é milionário, admirado em Wall Street e tem apoio bipartidário. Só em tempos muito interessantes mesmo a indicação por um presidente americano de uma leninista inimiga dos bancos vai ajudá-los a continuar a ter um amigo no Fed.
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