Ausente uma diretriz nacional sobre o que era real, necessário e esperado, proliferaram, e seguem triunfando, as mais variadas indicações, temores, boatos e crendices: de ozônio a microchips embutidos em vacinas, passando pela indicação de vermífugos. Artigo de Rodrigo T. Lamonato para a Gazeta do Povo:
Uma
regra não escrita da natureza humana dita que o poder não comporta
vácuo. Por toda a sociedade, essa noção é bastante espraiada e clara,
mesmo não sendo dita, tampouco ensinada - na ausência de quem possa
exercer o poder, o vazio será preenchido por outro agente. Este axioma
manifesta-se nas micro relações humanas – família, emprego, amigos, até
chegar ao plano macro das relações jurídico-institucionais – entes da
Federação, governos etc. No Brasil de 2020, em plena pandemia, o vácuo
do governo federal em normatizar protocolos nacionalmente, por manifesta
recusa em aceitar a realidade, levou todos os estados, e até
municípios, a correr para – mal ou bem – regrar o enfrentamento da
emergência sanitária posta.
Como
toda excentricidade jurídica, deu-se à luz a mais esta jabuticaba. Em
meio a uma crise de saúde sem precedentes em gerações, na esfera
federal, moveu-se a Administração para ditar o que deveriam fazer as
empresas no pagamento de tributos, salários e demais obrigações,
deixando o cerne, qual seja, como deveria portar-se a sociedade, num
deserto de esclarecimento. E, no campo das informações, o vácuo também
não prospera. Ausente uma diretriz nacional sobre o que era real,
necessário e esperado, proliferaram, e seguem triunfando, as mais
variadas indicações, temores, boatos e crendices: de ozônio a microchips
embutidos em vacinas, passando pela indicação de vermífugos.
O
mesmo verifica-se no espectro normativo; Brasil afora, tem-se a mais
variada sorte de procedimentos para restaurantes, salas de cinema e
locais de circulação de pessoas. Viseiras, máscaras, luvas, ou todos
deles juntos. Um metro, dois metros, um metro e meio. Mesas em local
aberto, mas proibidas em calçadas. Bares funcionando, e pessoas de
bolhas diferentes confraternizando sem o menor pudor em enxergar que a
mistura de esferas de convívio segue potencialmente explosiva para a
disseminação do vírus ainda não debelado.
E
o relaxamento ou não no funcionamento dos mais diversos
estabelecimentos seguiu então a lógica local da política-miúda. Saiu-se
“melhor” o setor mais articulado com o poder local. Tudo isso porque
cada ente foi deixado a legislar em caráter precário sobre tema de
relevância nacional com indisfarçado boicote do ente máximo sobre as
mais diversas cautelas necessárias.
A
letra da Constituição Federal, em seu art. 24, XII, regra sobre
legislar em matéria de previdência social, proteção e defesa da saúde:
competência concorrente entre União, Estados e Distrito Federal.
Contudo, em tempos de negacionismo escancarado, vê-se, e viu-se até
aqui, postura diuturna de negar a gravidade da situação pelas
autoridades federais. Não é preciso ir adiante em relatar o sabido.
Passados
oito meses do que poderia ter durado três, e vendo o noticiário trazer
alvíssaras notícias sobre vacinas em fase final de teste no mundo
desenvolvido, inquietaram-se os governadores, uma vez mais, diante da
omissão federal, e decidiram desbravar eles mesmos alternativas por
conta. São Paulo por meio de seu governador, mais por cálculo político,
decidiu, desde cedo, antagonizar com o Governo Federal, assumindo
protagonismo e editando normas como o Plano São Paulo – Decreto
64.881/2020. Mais recentemente, o mesmo mandatário decidiu seguir
adiante com planos de iniciar a sua vacinação indicando datas e até um
esboço de cronograma.
Surge
então, trôpego, o Governo Federal buscando “na marra” centralizar as
iniciativas na busca por liderança e protagonismo. O movimento foi
recebido com choque, e os demais estados viram-se numa situação
juridicamente confusa – a União que até então seguiu pela via do
terraplanismo ao minimizar a situação, agora, corre ao centro do palco e
nega aos demais qualquer autonomia. A ameaça escalou, com as bravatas
de sempre, vociferando com a possibilidade de confisco de vacinas, e
hoje tem-se inclusive o risco de que a imunização da sociedade seja –
também ela – judicializada perante o Supremo Tribunal Federal.
Mais
uma vez, nos vemos diante da máxima sobre poder e vácuo. Mas não há
axioma a equacionar o mais novo problema – preenchido o vazio, como
colocar de volta o gênio dentro da lâmpada? Como regrar o que nunca foi
feito por quem deveria, e convencer estados e seus governadores a
aceitarem a liderança de quem até aqui apenas negou a realidade dos
fatos sob o manto de grossa chuva de desinformação? O espaço preenchido
será dificilmente cedido por quem teve de arregaçar as mangas e procurar
sozinho suas soluções.
Rodrigo
T. Lamonato é advogado, gerente jurídico, pós-graduado em Direito do
Trabalho pela PUC/SP, com extensão em Contratos pela FGV/SP e Compliance
pelo Insper.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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