Que narrativas acabariam se propagando durante eventos históricos e como seria a patrulha ideológica. Dagomir Marquezi para a nova edição da Oeste:
Por
sua simplicidade funcional, o Twitter continua sendo uma grande
invenção. Reina na categoria microblog como uma rede social objetiva,
sem a poluição do Facebook ou a futilidade do Instagram. É o “porta-voz”
dos governantes, das empresas e de cada um de nós.
O
CEO do Twitter, Jack Dorsey, deixou crescer uma barba sinistra e
resolveu brincar de censor. O que é injustificável. Seu potencial
competidor, o Parler, foi abatido logo na decolagem. O Gab ainda não
embalou e também já foi expulso das lojas de aplicativos. Twitter é o
que temos. Por enquanto. Se usado com imaginação, pode revelar
utilidades surpreendentes.
Um
dos usos mais interessantes do Twitter é relembrar fatos históricos
como se tivessem acabado de acontecer, numa espécie de “o passado
agora”. É o que ocorre na conta criada há dez anos pelo historiador
britânico Alwyn Collinson, a @RealTimeWWII. Collinson se formou na
Universidade de Oxford e hoje trabalha para o Museu Britânico. Por meio
do Twitter, ele conta a história da 2ª Guerra, post por post, cada um
trazendo um fato específico do dia em que é publicado, acompanhado de
fotos, mapas, documentos etc.
Atualmente
a @RealTimeWWII conta o dia a dia dos fatos ocorridos em 1943. Em 2 de
janeiro, por exemplo, publicou, como se tivesse acabado de acontecer,
uma foto de soldados mortos boiando na água com o seguinte texto:
“Tropas australianas e norte-americanas alcançaram e capturaram a Praia
Buna, o último baluarte dos invasores japoneses em Papua-Nova Guiné”.
Como
uma máquina do tempo, o @RealTimeWWII nos faz saltar 78 anos na direção
do passado. É um sucesso — hoje conta com mais de 0,5 milhão de
seguidores. Outras contas seguem o mesmo modelo, simulando o diário da
viagem do Titanic, da 1ª Guerra Mundial, do assassinato de John Kennedy
etc. Collinson comentou sobre sua criação: “O Twitter oferece um meio
desconectado, fragmentado, que é melhor para atravessar a sensação de
caos e múltiplos eventos da guerra do que a narrativa tradicional”.
Fatos
fragmentados são mais fáceis de ser digeridos. A desvantagem é a falta
da perspectiva histórica. O que os japoneses estavam fazendo em
Papua-Nova Guiné? Por que foram expulsos? Por que resistiram tanto? Por
que aconteceu a guerra no Pacífico? Como ela se encaixa no panorama
global da 2ª Guerra? Quem estava lutando com quem? Onde fica Papua-Nova
Guiné? Nada disso cabe num post.
O
que conhecemos da História é o que sobrou de suas evidências. Gravações
numa pedra, um pedaço de papiro, uma foto envelhecida, um mapa
amarrotado, um filme 16mm esquecido em alguma gaveta. Somamos esses
documentos com as visões de eventuais testemunhas e dos estudos dos
historiadores (honestos). A soma dessas marcas do passado e diferentes
pontos de vista permitem uma visão mais precisa e profunda sobre um
período da História.
O
Twitter (e outras redes sociais) está fazendo com que a História seja
divulgada no mesmo momento. Não só o fato em si, mas o julgamento
imediato do acontecimento. É uma correria. A perspectiva histórica é
substituída pela miopia ideológica. A pessoa já tem uma opinião sobre o
fato antes mesmo que ele aconteça.
E se o Twitter existisse desde o início dos tempos?
Gênesis (@BibleBook) – há 1 minutoE da costela que o Senhor Deus tomou do homem, formou uma mulher. E disse Adão: esta é agora osso dos meus ossos, e carne da minha carne; esta será chamada mulher, porquanto do homem foi tomada.@DeusTP @Adao @Eva #costela #jardimdoedenEvx (@Eva) – há 30 segundosEu não sou puxadinho de homem!!!!!! Dizer que o macho veio primeiro é misoginia fascista! O osso é meu, a carne é minha!#Adaomachista #Eumepertenço #ImpeachDeusTP
Oque
aconteceria se Júlio César tivesse um canal no YouTube? E se Pero Vaz
de Caminha divulgasse o descobrimento do Brasil num blog? E se Ricardo
Coração de Leão tivesse uma conta no Twitter? E se Galileu Galilei
entrasse no LinkedIn? É difícil imaginar, pois estamos falando de eras
diferentes, com condições tecnológicas distintas.
Mesmo
assim, podemos especular como teria sido a 2ª Guerra se houvesse
internet e redes sociais na época. As redes seriam provavelmente
proibidas ou muito controladas em ditaduras como a Alemanha hitlerista, a
Itália fascista, o império japonês e a União Soviética. Mas o que
poderia acontecer num país aberto e democrático como o Reino Unido, que
passou por uma experiência tão dramática de resistência?
As
comunicações naquela época eram, claro, muito mais verticalizadas.
Diante da ameaça nazista, o primeiro-ministro Winston Churchill
organizava a defesa britânica e orientava a nação em declarações lidas
na BBC. Cada transmissão de rádio, que abria com os acordes iniciais da
Quinta Sinfonia de Beethoven, era ouvida pela população com respeito e
esperança. Funcionou. Os nazistas causaram destruição e terror, mas
jamais conseguiram invadir o território britânico. Com liderança firme e
lúcida, a nação decidiu resistir e cada um fez sua parte.
Agora
imagine os britânicos com Twitter em 1940. As tropas de Hitler estão no
porto de Calais, prontas para atravessar o Canal da Mancha e marchar
sobre Londres. Churchill pede a união da população para defender a
liberdade com sangue, suor e lágrimas.
Posts
começam a aparecer afirmando que Churchill é um velho colonialista,
belicista e perigoso para o futuro do país. Usuários exigem que ele seja
afastado e substituído por um governo que promova um acordo de paz com
os alemães. Proliferam hashtags como #PazSalvaVidas, #Diplomacia,
#GuerraNão etc. Hackers a serviço de Hitler multiplicam esses posts de
forma que eles estejam em todos os lugares.
O
premiê britânico não cede. Diz que é impossível levar a sério qualquer
acordo de paz com Adolf Hitler. Usa a conta oficial do governo para
pedir ao povo que resista à provável ocupação nazista. A conta é
suspensa por propagar a “cultura do ódio”. Um membro da Câmara dos
Lordes solta duas hashtags para seus 300 mil seguidores: #ForaChurchill e
#FicaemCasa.
Um
Twitter poderia, sim, ter ajudado a transformar os britânicos em
perdedores acovardados durante a 2ª Guerra. Por outro lado, a mesma
@RealTimeWWII mostra um exemplo de como as redes poderiam ter dado um
rumo diferente aos fatos.
No
dia 21 de janeiro de 1943, o governo britânico conseguiu decifrar um
telegrama destinado a Heinrich Himmler, um dos chefões do regime
nazista. O telegrama a Himmler, em linguagem burocrática, reportava a
eficiência do sistema de extermínio das SS em quatro campos de
concentração (Lublin, Belzec, Sobibor e Treblinka). O relatório mostrava
que até o fim do ano anterior os nazistas haviam matado exatamente
1.274.166 prisioneiros, em sua grande maioria judeus.
O telegrama foi subestimado pelos oficiais britânicos pois não falava explicitamente em mortes, mas em “tratamento especial”. Acabou numa pasta trancada em alguma estante. Uma rede social na época poderia ter vazado esse telegrama e alertado o resto do mundo sobre a catástrofe humanitária em curso.
Mas
isso não aconteceu. E a escala do extermínio — 6 milhões de judeus,
além de ciganos, deficientes físicos, homossexuais e prisioneiros
aliados, entre outros — só começaria a ser conhecida dois anos depois,
com o fim da guerra. O que não era divulgado no rádio ou nos jornais não
existia. Um post desses poderia gerar uma reação em cadeia na opinião
pública e mudanças radicais na estratégia dos aliados.
Hoje
as redes sociais “horizontalizaram” tudo. Todo mundo sabe tudo. E tem
opinião sobre qualquer assunto. A realidade virou um mero detalhe. O que
vale é a narrativa, vagamente baseada nos fatos, construída a partir de
princípios ideológicos.
Existe
um antídoto para esse superficialismo? Sim, ler livros de História,
consultar fontes primárias de informação, assistir a bons documentários.
Mas realizar essas tarefas todas dá trabalho. É muito mais fácil
compartilhar o post do amigo no Facebook com alguma hashtag radical.
Não
havia Twitter na 2ª Guerra Mundial. Hoje, o Twitter existe. E existem
também campos de concentração não muito diferentes de Lublin, Belzec,
Sobibor e Treblinka funcionando neste mesmo instante (sem os fornos
crematórios) na Coreia do Norte. Os prisioneiros em Kaechon, Yodok,
Hwasong e Hoeryong não contam com hashtags solidárias.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário