Machado de Assis, escreve Paulo Polzonoff em sua crônica na Gazeta do Povo, é leitura para olhos calejados:
Minha
maior dúvida antes de começar a escrever este texto é como conseguir
falar da perniciosidade de Machado de Assis lido por olhos adolescentes
sem parecer um Felipe Neto. Ou, pior ainda, um Sílvio Romero. Outra
dúvida, embora menor, é como expressar uma ligeira concordância com o
YouTuber sem parecer que não gosto da obra machadiana. Tem ainda a
dúvida recém-nascida de como escrever um texto inteiro sobre Machado de
Assis sem chamá-lo pela alcunha de “Bruxo do Cosme Velho”. Tentemos.
Pois
semana passada eu lá dando uma de Chapeuzinho Vermelho e caminhando
distraidamente pelo perigoso bosque das redes sociais quando me deparei
com a controvérsia da vez: Machado de Assis é leitura adequada para um
adolescente? O educador Felipe Neto defende que não. E ecoa a ideia
bastante comum de que ninguém jamais aprenderá a gostar de literatura
sendo obrigado a ler Machado de Assis. Felipe Neto ainda menciona os
livros do período romântico, mas nem vou tocar nesse ponto porque seria
chutar cachorro morto.
O
raciocínio do YouTuber tem vários problemas. O primeiro deles é nivelar
os leitores por baixo. É bem verdade que se derem "Harry Potter" e "Dom
Casmurro" a um menino de 15 anos ele provavelmente escolherá o
primeiro. Mas isso tem mais a ver com uma necessidade natural de ser
aceito pelo grupo do que com a capacidade de assimilar as obras. Outro é
pressupor que o gosto pela leitura seja uma virtude em si. Não é.
Aliás, a depender da literatura que a pessoa consuma ao longo de toda a
vida, é bem provável que a leitura lhe seja extremamente danosa. Por
fim, ele evoca a velha ideia hedonista de que ler é puro prazer e não
exige sacrifício algum.
Oquei.
Machado de Assis é um estilista maravilhoso. Concordo. Se bem que o
saudoso Millôr Fernandes, quando lhe diziam que Machado era gênio,
costumava argumentar que, se fosse mesmo gênio, ele não teria escrito
coisas como “esta a gloria que fica, eleva, honra e consola”. Millôr se
referia à péssima hierarquização das palavras. Como assim ela eleva e
honra, para só depois consolar? Mas isso é picuinha milloriana e
polzonoffiana discutida entre risadas no finado Garcia & Rodrigues. O
fato de ele ser um estilista maravilhoso (alguns dirão que é perfeito),
contudo, não o torna leitura obrigatória. Muito menos para um
adolescente.
A
maior qualidade da prosa machadiana, como ensina qualquer professor de
cursinho e repete qualquer tuiteiro dado a crítico literário, é sua
ironia. É por meio dela que Machado, vá lá, “investiga os subterrâneos
da alma” (argh) e, sem fazer quaisquer concessões ao leitor, expõe o que
há de mais perverso na alma humana. E não é só na traição de Capitu. Há
tempos venho dizendo que, em "Dom Casmurro", mais importante é perceber
a capacidade de Bentinho se convencer da história e, por extensão,
convencer o leitor menos atento a essa armadilha.
Ao
adolescente de orelhas de abano criado nas ruas de cascalho do Bairro
Alto isso já era um problema. Imagine, então, para os adolescentes
criados à base leite de soja e YouTubers como Felipe Neto. Ou ainda a
adolescentes tardios obcecados por microagressões e por afirmar todas as
suas identidades possíveis – racial, sexual, religiosa e política.
Tirando as exceções de praxe, o adolescente de hoje é uma criança à qual
lhe cabem apenas livros infantis ou semi-infantis. Não por incapacidade
intelectual, e sim por incapacidade emocional.
Leitura para olhos calejados
Machado
de Assis (e aqui estou pensando sobretudo em “Dom Casmurro” e “Memórias
Póstumas de Brás Cubas”) é leitura para quem já tem alguns valores
básicos consolidados. Ler “Dom Casmurro”, por exemplo, sem conhecer o
valor do perdão é jogar as mãos para o alto e sair correndo, gritando ao
vento a sua desesperança. Ler “Memórias Póstumas” sem perceber o
sarcasmo como mecanismo de defesa é enxergar no ser humano o que ele tem
de pior e mais ridículo.
Pouquíssimos
adolescentes (se é que algum) estão preparados para receber o que o...
o... o... o... o Bruxo do Cosme Velho (é, realmente não deu para evitar)
tem a oferecer a seus leitores. Para o bem da verdade, poucos adultos
também estão preparados para entender, por exemplo, que por trás de todo
o rancor de Bentinho esconde-se a dúvida de toda uma vida. Ou que o
famoso discurso do “legado da nossa miséria” é, na verdade, um lamento
de Brás Cubas por não ter sido capaz de comungar na deliciosa existência
humana.
Falo
por experiência própria. Apresentado a “Dom Casmurro” e “Memórias
Póstumas” ainda antes dos 17 anos, posso dizer que os livros não
interferiram no meu gosto pela leitura. Mas minha incapacidade de
absorver os profundos dramas internos dos personagens, dramas que iam
muito além do excesso de espinhas na cara, fez um estrago em minha vida.
Graças à exposição precoce a Machado, por exemplo, fui apresentado
muito cedo à desconfiança, à perversidade, à malícia. E, por isso,
passei anos vendo a vida e as pessoas por um prisma entre o soturno e
cruel. Não foi bom.
Levou
um tempo e algumas releituras, além de umas boas e bem-vindas rasteiras
da vida, para que eu entendesse que os valores dos personagens
machadianos não são necessariamente os valores das pessoas cá no mundo
real. Que há vilania, sim, mas também há bondade. Que há desconfiança,
ah, se há, mas também é possível se jogar de bungee jumping num
relacionamento. Que há amigos, e não só escobares. E assim por diante.
No
mais, a educação de massa deveria se abster de recomendar livros para
os estudantes. Quaisquer livros. Ainda mais para uma geração que absorve
valores que lhe são dados por outros meios, como os videogames e os
infames vídeos de Felipe Neto e seus colegas YouTubers. Além disso, a
obrigatoriedade da leitura transforma a experiência literária (que, em
essência, é uma experiência espiritual) numa experiência técnica, fria e
vazia, traduzida numa nota de prova, num diploma ou, pior, no
repugnante objetivo de ler qualquer autor “do jeito certo”.
E,
antes que você diga que estou enganado porque você conhece um Enzo ou
Mateus que leu Machado de Assis, se encantou e nem por isso virou um
adulto mau ou contaminada pelo cinismo, me adianto: há exceções. Sempre
há. Mas qual seria a graça de escrever sem poder dar uma generalizadinha
de vez em quando, não é mesmo?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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