Minha geração aprendeu a repudiar tudo o que não fosse transgressor. Ou revolucionário, chame como quiser. A crônica de Paulo Polzonoff Jr. para a Gazeta do Povo:
Se
você parar para pensar, o Especial de Natal do Brasil Paralelo (770 mil
visualizações até o momento) foi a realização de todos os anseios
estéticos dos conservadores. A produção trocou o funk pela música
clássica, os slogans progressistas por poesia de Manuel Bandeira, a
discussão identitária por uma conversa sobre valores judaico-cristãos, o
tom histriônico pelo meio-tom civilizado e o cenário multicultural pelo
bom e velho Presépio.
E,
no entanto, tudo me pareceu extremamente anacrônico. Me senti como se
estivesse num sarau ao lado de Álvares de Azevedo. Não, Augusto dos
Anjos. Até que, depois de dez minutos lutando contra essa sensação de
que eu precisava gostar do que estava vendo na tela do computador,
desisti de brigar e passei a procurar em mim o porquê daquele infeliz
incômodo. Eu o encontrei ali sob o piano, embaixo de uma pilha enorme de
transgressão.
Minha
geração aprendeu a repudiar tudo o que não fosse transgressor. Ou
revolucionário, chame como quiser. Qualquer aceno à tradição era visto
como reacionarismo, caretice, quando não cafonice pura e simples. Por
isso, sempre que um artista precisava recorrer à tradição, ele o fazia
com um toque de azedume ou ardência, quando não as duas coisas. Para
deixar claro que se inspirava na tradição para logo em seguida
destruí-la. O objetivo da cultura passou a ser o proverbial “soco na
boca do estômago do espectador”, que substituiu a elevação do espírito
ou qualquer coisa do gênero.
Niilismo quase agradável
David
Foster Wallace, ele próprio um pós-moderno transgressor, via esse
movimento com apreensão e tristeza. E, para ele, a maior culpada pela
epidemia de cinismo que assola nosso tempo era a ironia. Tendo a
discordar porque vejo uma distinção clara entre a ironia e o sarcasmo –
este, sim, realmente maléfico. Mas exponho resumidamente aqui a ideia de
Wallace, segundo a qual produtos transgressores como “Seinfeld”,
possivelmente a melhor sitcom de todos os tempos, contaminaram a
mentalidade de toda uma geração com um niilismo mais palatável, quase
agradável – mas ainda assim niilista.
Um
niilismo que se metamorfoseia rapidamente em cinismo e que por sua vez
dá origem a essa sensação equivocada de que só há virtude na
contrariedade, no antagonismo e no anti-intelectualismo. Deixar-se levar
por expressões mais altas da cultura passou a ser visto como algo
elitista. Quase cafona. Pior, cafonérrimo. Aspirar a algo que vá além do
superficial passou a ser visto como pretensioso. Passou a ser social e
intelectualmente aceitável, quando não desejável, dizer coisas como
“Shakespeare? Prefiro Stephen King!” ou revirar os olhinhos para a
simples menção a qualquer coisa que cheire remotamente a Inteligência
com "i" maiúsculo.
A
overdose de ironia, para Wallace, levava a um entorpecimento dos
sentidos. As fronteiras entre o discurso literal e o não-literal
(irônico) desapareciam, criando um mundo caótico e hostil onde a palavra
perdia peso e identidade. A solução para isso era abdicar da ironia, do
desejo de transgressão, da “violência da palavra” a fim de descobrir
novas possibilidades de redenção – e até de voltar a acreditar que essa
redenção é possível.
Coro de suspiros
O
vício em transgressão, nascido desse niilismo que permeia todas as
grandes realizações culturais dos últimos 40 anos, também deu origem a
uma geração que só acredita na virtude do antagonismo. Em se tratando de
política, de comportamento, de cultura e até de relacionamentos, ao que
parece nos tornamos uma versão ainda mais chata do anarquista espanhol
que chegava no bar, perguntava sobre o que os amigos estavam conversando
e, quando via que a conversa caminhava para um consenso, se levantava
todo entusiasmado para dizer “soy contra!”. E, assim, dar início a toda
uma nova discussão.
Não
sou exatamente desses. Até porque nos últimos anos adquiri o costume de
me expor a obras nada transgressoras sempre que sinto os primeiros
calafrios de uma febrinha niilista qualquer. E exerço voluntariamente a
nobre e esquecida arte de concordar só para ouvir aquele coro de
suspiros que se segue a um consenso na mesa do boteco.
Mas é inegável que quatro décadas de exposição a tudo o que é transgressor/revolucionário por meio do sarcasmo mais e menos sutil tiveram um efeito sobre mim. E talvez tenham me tornado um homem incapaz de admirar por completo um programa de Natal com música, boa conversa e poesia num cenário tradicional. Azar o meu, dirá alguém – e serei obrigado a concordar
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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