Como
circo, não era lá essas coisas. No diminuto comboio de trailers
viajavam o dono (e apresentador do espetáculo), dois trapezistas, um
mágico com sua ajudante, um palhaço, dois ou três funcionários e um
homem com cara de galã mexicano — o bigode fino e perfeitamente aparado
combinava com o topete besuntado de brilhantina, cada fio de cabelo em
seu lugar. Não havia globo da morte, jaulas com feras que faziam tudo o
que mandava o domador, saltos sem rede embaixo, nenhum desses requintes
de circo com nome estrangeiro. Mas uma atração adicional compensava
quaisquer carências: na segunda parte da noitada era apresentada uma
peça de teatro. Isso fazia a diferença e justificava o nome nas placas
com luzes vermelhas penduradas sobre a entrada: Circo Teatro Irmãos
Nogueira.
No
começo da década de 1960, a trupe — que não incluía nenhum Nogueira,
muito menos dois — andou ancorando em Taquaritinga uma vez por semestre,
para temporadas de três semanas. Numa noite de 1961, com pouco mais de
10 anos, fui apresentado aos subúrbios do mundo de Shakespeare. Sentado
no camarote do prefeito, vi ao lado do meu pai “Maconha, a Erva
Maldita”, um drama com apenas três atores mas capaz de fazer chorar até o
dentista mais temido da cidade. O protagonista era o homem com jeito de
galã, no papel do filho viciado que infernizava a vida do pai (um dos
trapezistas) e da mãe (a ajudante do mágico).
A
procissão de horrores consumia quase integralmente os 30 minutos do
enredo. E a indignação reinava entre os homens, e a choradeira banhava o
rosto das mulheres na arquibancada. A cada tragada no cigarrinho
maligno, lá vinham bofetadas na mãe, socos e pontapés no pai e outras
brutalidades, anabolizadas por insultos, ofensas e blasfêmias. Em vão,
os espectadores tentavam deter o moço enlouquecido berrando medonhas
promessas de revide. Alheio aos protestos, ele continuava barbarizando
em cena até o desfecho inesperado. Depois de um ligeiro sumiço por trás
da cortina, o carrasco doméstico reaparecia enfim liberto do vício
hediondo. Abraçados ao filho risonho e vestido com mais apuro, os pais
festejavam o final feliz. Só então acabava o sofrimento da caipirada na
plateia, que aplaudia enquanto enxugava cataratas de lágrimas.
Achei
a coisa meio exagerada. Teatro era mesmo aquilo? Voltei na noite
seguinte para concluir a avaliação do repertório reduzido a duas peças. A
segunda era “Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Já
vira a história no cinema, num filme mudo. Resolvi conferir a versão
circense e acompanhar com especial atenção a performance do
protagonista. O filho maluco de “Maconha, a Erva Maldita” também
interpretava o filho de Deus. Eu já estava estendido no camarote quando
soube que ele fora derrubado no meio da madrugada por uma gripe que o
impedia de atuar naquele sábado. Ao despertar, o astro balbuciou o
recado ao patrão: faltavam-lhe forças para encarnar o papel de Jesus. O
patrão já se conformara com o cancelamento do espetáculo quando foi
abordado por um exotismo municipal chamado Chicho Laize.
Muito
doido, falante, audacioso, disfarçando a matreirice com a expressão
abobalhada, Chicho colecionava façanhas que meio mundo conhecia. Sem
profissão definida, vivia de bicos. O mais recente fora ajudar a erguer a
lona e ajeitar as tralhas dos trailers, o que lhe bastara para
comportar-se como amigo de infância da trupe. Todos (inclusive o dono) o
tratavam pelo nome. Mas nenhum deles (inclusive o dono) sabia que
Chicho era maluco.
Informado da defecção no elenco, foi falar com o chefe.
— O senhor sabe qual é a minha verdadeira profissão? — perguntou.
O silêncio do homem respondeu que não.
— Artista — revelou Chicho. — Artista de teatro.
— Você sabe fazer Jesus Cristo? — animou-se o patrão.
— É o papel que mais conheço — gabou-se Chicho.
Apeça
de 20 minutos já começava no calvário. Quando a cortina se abriu, lá
estava Chicho Laize carregando uma pequena cruz de madeira, escoltado
por dois soldados romanos (os trapezistas) armados de chicote e Maria
Madalena (a ajudante do mágico) com uma toalha na mão. Espanto na
plateia. O soldado à direita do Cristo abriu a encenação com um insulto a
Jesus e uma chicotada que colidiu com o palco-picadeiro a centímetros
do pé do mártir.
— Cuidado que isso vai me pegar! — advertiu Chicho.
Risos na plateia. Mais alguns passos e ouviu-se o pedido ao soldado à esquerda do filho de Deus:
— Vem cá e me ajuda — disse o protagonista. — Essa cruz é meio pesada.
O
romano a sua direita reagiu ao apelo com outro estalo de chicote. O
terceiro golpe acertou a canela e acabou com a paciência do Cristo:
— Agora você me pegou, porra! Eu tinha avisado! Foi de propósito!
Gargalhadas
na plateia. O dono do circo ordenou um intervalo de cinco minutos.
Reaberta a cortina, vibração na plateia. Pendurado na cruz, cercado pelo
Bom Ladrão (um dos soldados do primeiro ato) e pelo Mau Ladrão (o outro
soldado), Chicho tinha um cigarro pendurado no canto da boca.
— Se és o filho de Deus, livrai-me desta cruz! — implorou o Bom Ladrão.
— Tá difícil — retrucou Jesus. — Mas vou ver se consigo falar com meu Pai.
O Mau Ladrão partiu para a provocação:
—
És apenas um mentiroso sem poderes — desdenhou em tom debochado. — Se
tens forças milagrosas, por que não te livras desta cruz?
Chicho caprichou na réplica:
—
Cala a boca, ladrão! — ordenou. Em seguida, apontou o indicador
esquerdo para o alto e berrou a ameaça: — Deixa que lá em cima nós
acerta!
O
acesso de ira fez o cigarro cair-lhe da boca. Uma pequena chama
apareceu no sopé da cruz. Em vez de apagá-la com dois ou três sopros, o
dono do circo convocou o elenco para combater o incêndio e avisou ao
distinto público que o espetáculo chegara ao fim. No dia seguinte, a
trupe partiu para nunca mais voltar. Atravessei a infância e o início da
adolescência achando que teatro era aquilo. Descobri que não quando, já
um marmanjo, vi em cena grandes atores e atrizes.
Recordo
aquelas noites no circo e penso no pesadelo imposto às crianças pelo
Brasil do coronavírus. Muitos milhares têm a idade que eu tinha quando
achei que aquilo era teatro. A garotada guardará na memória e na alma o
que viu, ouviu e teve de fazer no ano mais estranho. Há dez meses, essas
crianças souberam que uma doença difícil de explicar exigia a troca da
sala de aulas pelo computador instalado numa sala da casa. Que deveriam
pedir a ajuda dos pais em vez de recorrerem aos professores. Que
deixariam de brincar com os amigos e teriam de conformar-se com a
companhia de irmãos (ou com a solidão). Que as visitas aos avós estavam
suspensas até sabe Deus quando. Devem estar achando que um país é assim
mesmo, que muitos pais e professores são assim mesmo, que todos os que
mandam são assim mesmo.
Mas
não deveria ser assim, descobrirão quando souberem o que efetivamente
aconteceu em 2020. Então a Geração Covid entenderá que teve inutilmente
confiscado um ano inteiro de vida. Para que o crime se consumasse,
conjugaram-se uma boa parcela de professores orientados pela ideologia
da preguiça, de diretores e donos de escolas movidos pela política do
lucro, de pais e mães infectados pela epidemia de pusilanimidade
estrábica, a soberba de jaleco e governantes que se dividem em duas
tribos infames: a dos irremediavelmente incapazes e a dos capazes de
tudo. Ambas só aceitam gente que não sabe o que são afetos reais. É
compreensível que nenhum dos envolvidos na conjura perca o sono com as
violências infligidas às crianças do Brasil.
A
quarentena escolar brasileira é a mais extensa e intensa do mundo. Não
foi a primeira geração de crianças traídas. Mas nenhuma foi tão
cruelmente atraiçoada por tantos traidores.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário