Naquela
eleição de novembro passado antes da nossa em que os defensores do
“estado de direitos especiais” da gloriosa imprensa brasileira te
juravam que a sobrevivência da democracia nos Estados Unidos e no mundo
dependiam da disputa entre Joe Biden e Donald Trump e açulavam o STF a
censurar e prender quem dissesse o contrário, além das 120 leis de
inciativa popular de alcance estadual, das milhares de leis locais, dos
referendos e das votações de recall diretamente convocadas, propostas ou
decididas pelos eleitores, 35 estados também tiveram eleições para 78
das 344 cadeiras de juizes das suas supremas cortes.
O
modo de constituir o Judiciário foi um problema intrincado desde o
primeiro minuto do governo revolucionário estruturado para que o povo
passasse a governar o governo, vulgo “democracia”, que vigora por lá
desde 1788.
Na
primeira fornada não houve como evitar: os governadores nomearam os
juízes seguindo o modelo das monarquias europeias que vigora no Brasil
até hoje. Mas eles nunca se conformaram com a ideia obviamente absurda
de que, numa democracia, os fiscalizados fossem responsáveis por nomear
os seus fiscais.
Nas
primeiras décadas do século 19 essa discussão ferveu, com a maioria dos
estados aderindo à eleição direta de juízes. Cabe lembrar que os
estados americanos precederam historicamente a União e resistiram muito a
aderir a ela. Cada um tem, portanto, todas as instituições de um país
independente o que vale dizer sua própria constituição e, em matéria de
judiciário (todos menos oito que, ao longo do caminho, decidiram
dispensar a instância intermediária) têm uma estrutura completa com duas
instâncias, a primeira, local, e uma corte de apelação estadual, mais
uma suprema corte que só trata de questões constitucionais.
Desde
sempre o debate esteve centrado naquela velha controvérsia para boi
dormir: “se o juiz tiver de fazer campanha para ser eleito terá de
arrumar dinheiro o que comprometerá sua isenção em relação ao poder
econômico”, ao que as pessoas razoáveis respondiam que sujeito às
pressões do poder econômico todo mundo sempre esteve e estará e que,
sendo assim, se o que se desejava era obter justiça, seria fazer papel
de idiota não providenciar para que seus juízes estivessem sujeitos
também às pressões do eleitor sem dinheiro.
Resumidamente ha três tipos de eleição de juizes em vigor no país hoje:
Nas
eleições partidárias os candidatos, ou são nomeados pelos partidos, ou
têm de declarar a sua preferência por um deles ao registrar sua
candidatura (a porta de entrada fica sempre aberta, sem caciques na
portaria). Ha eleições primárias para que cada partido chegue a um único
candidato por vaga até a eleição geral. Mas ha estados em que
candidatos a juiz de todos os partidos concorrem nas primárias juntos
indo para a eleição geral somente os mais bem votados. Em 2020 houve 18
eleições partidárias para supremas cortes estaduais envolvendo 12
cadeiras ocupadas por juizes republicanos e seis ocupadas por juizes
democratas.
Nas
eleições não-partidárias os partidos não se envolvem oficialmente mas
alguns estados exigem e outros proíbem que os candidatos declarem sua
preferência. Como, porém, o eleitor lá é o centro de tudo, formal ou
informalmente o jogo acaba sendo aberto e todo juiz tem de deixar clara a
sua preferência ideológica se quiser ser eleito. Nas eleições primárias
desses estados a regra é diminuir o numero de candidatos a dois por
vaga. Em 2020 houve 31 eleições não partidárias para juiz de suprema
corte estadual.
Nas
eleições de retenção o juiz não concorre com ninguém. Os nomes de todos
que estão em atividade vão para as cédulas com uma pergunta: “O juiz
fulano de tal fica no cargo por mais um termo”? “Sim” ou “Não”. Em 2020
houve eleições de retenção de juízes de supremas cortes em 29 estados.
28 dos cargos eram de juizes não partidários e um era de um juiz
democrata.
No
computo geral, como já dito, 35 estados tiveram eleições em 2020 para
78 das 344 cadeiras de juizes das supremas cortes estaduais, o que
representa só 23% do total porque os mandatos não são coincidentes nem
em todos os estados nem, necessariamente, dentro de cada suprema corte
de cada estado.
As
datas dessas eleições também variaram. 29 estados fizeram as suas “de
carona” na cédula da eleição presidencial de novembro, cinco já tinham
feito as deles antes dessa data e um estado deixou para fazer a sua
agora em dezembro.
41
juizes concorreram à reeleição, dos quais 37 (90%) tiveram sucesso. 28
dos 29 juizes submetidos a eleições de retenção (97%) mantiveram seus
cargos. Thomas Kilbride, democrata, foi o único que perdeu este ano, em
Illinois (em 2018 todos os cinco juizes da suprema corte de West
Virginia sofreram recall por corrupção). Sua vaga foi preenchida por um
juiz indicado interinamente pela própria corte para servir até dezembro
de 2022. Em novembro de 2022 o substituto de Kilbride terá de concorrer a
uma eleição partidária para continuar no cargo. Se vencer terá um
mandato de 10 anos, mas sempre sujeito a eleições periódicas de
retenção.
38
dos 50 estados americanos fazem eleições para seus juízes de supremas
cortes estaduais. Os outros 12 usam sistemas de nomeação pelos
governadores, pelos legislativos estaduais ou por comissões montadas
para essa finalidade. Mas mesmo estes estão sujeitos a “eleições de
retenção” no meio do caminho, conforme expressamente recomendado pela
American Bar Association, o equivalente deles da OAB que aqui alia-se à
privilegiatura contra o povo.
Para
cortes intermediárias de apelação houve, em 2020, eleições em 30
estados envolvendo 201 vagas de juiz numa instância que tem um total de
976 juízes. Houve ainda eleições para centenas de cortes de primeira
instância.
Cabe
lembrar finalmente que os juízes da Suprema Corte Federal são os únicos
nomeados pelo presidente com chancela do Senado e com idade limite para
sair. Mas a Constituição Federal americana tem apenas 7 artigos e 28
emendas que definem o sistema de governo mais os chamados “direitos
negativos” do indivíduo, isto é, tudo aquilo que o Estado não pode fazer
contra ele. E isso é tudo, em geral para reafirma-los, em que pode se
meter o STF deles.
Um
direito-chave, entre esses “negativos”, é o direito à propriedade, que
lá é totalmente inviolável. O Estado só pode chegar ao bolso do cidadão
com o consentimento expresso dele, no voto, e essa é a “trava” de todo o
resto do sistema. Os “direitos positivos”, ou seja, todos aqueles em
que o Estado ou o resto da sociedade precisam ser mobilizados para que
cada indivíduo os tenha satisfeitos, que são, basicamente, todos aqueles
que custam dinheiro, ficam reservados para as constituições estaduais
ou municipais. De impostos e questões envolvendo qualquer forma de
“distribuição de renda” para baixo, como é o caso de todo “direito” dado
a alguém que envolva custo para outrem, quem vai pagar a conta é que
decide, “sim” ou “não”, se o seu estado ou a sua cidade vai conceder
adota-lo.
Ou
seja, quase tudo em que o nosso STF se mete aqui, exceção feita ao que é
da alçada dos legislativos, a casa dos representantes eleitos do povo
em que ninguém, a não ser o próprio povo, tem o poder de tocar, vai sem
dizer, lá é resolvido nas supremas cortes estaduais. E tudo seus juízes
decidem sabendo, sempre, que logo logo a “eleição de retenção” vem aí…
Na democracia de verdade, portanto, quem anda “debaixo de vara” são os juízes.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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