Os “do contra” sinalizam uma ruptura incondicional com essa ordem paulista do Brasil, vigente até 2018. Não necessariamente são bolsonaristas, mas são necessariamente antipetistas e desprezam os tucanos. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
A
redemocratização do Brasil trouxe a ascendência de São Paulo no cenário
nacional. Sarney (MDB-MA) e Collor (PRN-AL) funcionaram como uma
espécie de mandato tampão das oligarquias nordestinas. Um emedebista de
Minas Gerais, surpreendentemente, causou o fim da hiperinflação ao
colocar um sociólogo marxista na pasta da Economia, e o resto é
história: de 1994 a 2014, as eleições presidenciais foram disputadas
entre PT e PSDB, dois partidos nascidos no seio do departamento de
sociologia da USP.
Nesse
período, os atores mais constantes na vida nacional foram estes dois
partidos, mais a dupla egressa do bipartidarismo da era militar: MDB (ou
PMDB), antigo partido democrático de oposição, e DEM (ex-PFL, surgido
da ARENA), antigo partido de situação. Esse bipartidarismo imposto de
cima fez com que não fosse possível falar em partido paulista ou partido
mineiro, como na República Velha. Ao cabo, DEM e MDB (usemos seus nomes
atuais) acabaram por se identificar com cacicados locais. São partidos
regionalistas, que costuram uma colcha de retalhos para entregar à
Câmara e ao Senado. Em Brasília, os partidos paulistas tinham de se
haver com essas bancadas entregues pelos cacicados locais.
Em
2018, a primazia paulista na eleição presidencial se esfacelou: o PSDB
não só não foi ao segundo turno, como ficou em quarto lugar, com míseros
4% dos votos válidos. Logo à sua frente, estava uma liderança
nordestina, Ciro Gomes (PDT-CE); e atrás, com 2,5% dos votos, o neófito
Amoedo (NOVO). Em primeiro lugar ficou Jair Bolsonaro, político
periférico do Rio de Janeiro, que concorreu com uma legenda de aluguel.
Em
2020, esse processo de despaulistização avança. Pela primeira vez na
história desta democracia, nenhuma capital elegeu o PT. E o PSDB levou
quatro, sendo apenas uma de um grande colégio eleitoral: São Paulo, sua
casa. O PSDB perdeu Belo Horizonte para um outsider reeleito.
Sobraram-lhe uma no Nordeste (Natal) e duas na Amazônia (Porto Velho e
Palmas).
Principais partidos com identidade pelo país
Existem
aqueles partidos amorfos ao qual se chama popularmente de Centrão. PP,
Avante, Republicanos, Patriotas, PSL etc. Não os coloco na análise
porque a filiação a esses partidos não é muito informativa; muitas vezes
funcionam como legenda de aluguel para quem queria sair avulso como
candidato. O MDB, embora seja um saco de gatos, tem história, e é
reconhecível por sua organização regional.
Até
aqui, listei quatro partidos importantes (DEM, MDB, PSDB, PT), e agora
acrescento mais três partidos: PSB, PDT e PSOL. PSB e PDT são, hoje,
partidos de oligarquias nordestinas: a do falecido Eduardo Campos,
candidato à presidência em 2014 (substituído por Marina Silva), e a de
Ciro Gomes. São o poder do Recife e de Sobral no mapa regional, e
ganharam, somados, 4 capitais, todas no Nordeste. (Como o partido
herdeiro do varguismo gaúcho se tornou o partido da oligarquia de Sobral
é assunto para verdadeiros cientistas políticos.)
E
o último é o PSOL, uma espécie de seção do PT voltada para o
funcionalismo público — não é de admirar, portanto, que tenha despontado
no começo entre cariocas e gaúchos, cidadãos assombrados pelo fantasma
de Brizola. Este ano o PSOL ficou melhor do que o PT, porque levou uma
capital (Belém), e levou Boulos ao segundo em São Paulo. Isso pode dar a
impressão de que o PSOL está substituindo o PT, mas acho mais
apropriado falar em uma fusão. Afinal, o PT deixou de lançar
candidaturas próprias em algumas cidades para apoiar o PSOL. Este foi o
caso de Belém, Manaus e Florianópolis.
As esquerdas no Brasil
Não
existe nenhuma capital do Brasil em que o PT e o PSOL tenham disputado
relamente votos. Há briga verdadeira entre PSB e PT (vide os primos no
Recife), mas não entre PT e PSOL. Assim, prefiro dizer que em alguns
estados o PSOL absorveu PT na capital. À exceção do Pará — onde, aliás, o
PSOL ganhou —, isso só aconteceu do Sudeste para baixo: Minas, São
Paulo e Santa Catarina. É de se presumir que o psolista Edmilson,
ex-petista e político tradicional do Pará, não tenha adotado um discurso
tão ideológico quanto o dos seus correligionários ao sul. O voto deve
ter sido mais pessoal e menos partidário.
Deixando
teoria política de lado, e adotando o vocabulário eleitoral brasileiro
da década passada, podemos dizer que esquerda significa adesão ao
lulismo. PT e PSOL são, no frigir dos ovos, a mesma coisa. Já os
nordestinos só aderem depois de descobrir que não podem ganhar para o
PT. Campos e Ciro são satélites por falta de opção; querem que o PT seja
o seu satélite. Daí, brigam.
Há
estados em que um dos dois partidos nordestinos foi a principal força
política de esquerda da capital, desbancando os lulistas leais. São
eles: Ceará, Pernambuco, Paraíba, Alagoas, Sergipe, Acre, Rio de Janeiro
e Paraná. Só obtiveram vitória no Nordeste. (Repito: considero aqui os 7
partidos analisados. Houve lugares em que o Cidadania, ex-PPS, teve
mais destaque, mas o Cidadania não é relevante, e não adere sempre a
Lula.)
E
há estados cujas capitais tiveram o PT como principal força política de
esquerda, sem chance para oligarcas nordestinos esquerdistas: Amazonas,
Maranhão, Piauí, Rio Grande do Norte, Bahia, Espírito Santo, Goiás e
Mato Grosso do Sul. Em todas, perdeu.
Por
fim, há dois estados onde todas as forças de esquerda são pífias:
Roraima (que tem a crise da Venezuela no nariz), Rondônia e Mato Grosso.
É
digno de nota que no Rio de Janeiro, na Bahia e em Goiás os candidatos
mais votados desses partidos de esquerda tinham o nome de urna com uma
patente, ou seja, candidatavam-se como Delegada Fulana ou Major Sicrana.
Isso é um marco daquilo que podemos caracterizar como candidaturas do
contra. As lideranças locais sentiram o declínio do petismo, e
mimetizaram os do contra.
Onde estão os do contra
Digo
“do contra” apenas para sinalizar uma ruptura incondicional com essa
ordem paulista do Brasil, vigente até 2018. Não necessariamente são
bolsonaristas, mas são necessariamente antipetistas e desprezam os
tucanos.
O
único estado onde um do contra levou a capital foi o Espírito Santo. Lá
se elegeu o Delegado Pazolini, de 38 anos de idade, que ingressou na
vida pública em 2018, ano que foi marco da ruptura.
Por
pouco, dois do contra não levam as capitais do Pará e do Ceará, estado
sede do clã Ferreira Gomes. Em Belém, um completo neófito em legenda de
aluguel, com zero experiência de vida pública, desbancou políticos
tradicionais e quase ganha a prefeitura, que terminou elegendo um
psolista. Terá sido a rejeição ao PT a causa de sair um candidato
filiado ao PSOL? Sikêra Júnior, fenômeno de audiência sediado no estado
vizinho, viajou para Belém na antevéspera da eleição, e estava em
cruzada contra o partido da “lacração”. (Que a audiência de programa
popular já conheça o termo, é coisa digna de nota). É sensato apontar um
grande sentimento de ruptura no Pará, uma vez que por pouco não trocam
um político conhecido por outro totalmente desconhecido, e que lá o PT
nem saiu candidato.
Em
Fortaleza, quase ganha do candidato de Ciro Gomes um do contra em
legenda de aluguel. O Capitão Wagner ingressou na política em 2011 como
policial amotinado (uma espécie de Cabo Daciolo sóbrio), mas nunca alçou
voos altos. Desde 2018, cresceu na vida pública, e pela primeira vez
ousou tentar a prefeitura.
No
Recife, o sucesso da esquerda pode ser atribuído a Bolsonaro.
Tradicionalmente, o ex-ministro da educação, Mendonça Filho (DEM),
disputa com a prole de Arraes. Mas Bolsonaro fez campanha por uma
delegada desconhecida que terminou em quarto lugar, com 14% dos votos
válidos. Mendonça ficou com 25, apenas 2 atrás de Marília Arraes, e não
pôde ir ao segundo turno. Que Bolsonaro tenha tanta força no Recife, é
digno de nota.
O país
É
verdade que os eleitores votam pensando em ônibus e IPTU, mas isso não
significa que o desempenho dos partidos seja irrelevante para ver o
cenário nacional. Afinal, as elites políticas conversam entre si, e
escolhem ou criam partidos. Por que se filiar ao PT e não ao PSOL? Ao
DEM e não ao MDB? As capitais são importantes para enxergarmos as
escolhas partidárias feitas pelas elites.
No
Nordeste, há três elites políticas tradicionais com notoriedade
nacional: Ciro Gomes do Ceará, Arraes/Campos de Pernambuco e ACM da
Bahia. Todos filhos e netos de políticos. O Nordeste não mudou. E o
grosso da região (especialmente a Bahia) está sempre pronto para apoiar
qualquer governante que se sedimente em Brasília. Essa foi a única
região onde os estados todos votaram todos pela manutenção do status quo
na eleição de 2018.
Na
Amazônia, há uma confusão tremenda: legendas de aluguel vão parar no
segundo turno. Há políticos tradicionais, mas nem sempre eles estão em
legendas tradicionais. Os partidos do segundo turno nas capitais dos
dois maiores estados da região foram PSOL, Patriotas, Avante e Podemos.
Em 2018, os únicos estados que votaram pela manutenção do status quo
foram o Pará e Tocantins. A capital de um elegeu a muito custo o PT
disfarçado de PSOL, e a do outro foi uma das 4 capitais do PSDB.
No
Centro-Oeste, o PSD (uma espécie de alternativa ao MDB criada por
Kassab) levou Campo Grande e foi para o segundo turno em Goiânia. O MDB
levou Goiânia e Cuiabá.
No
Sul, sem grandes mudanças. A capital da Lava Jato elege fácil um
político antipetista tradicional, os catarinenses nem têm a chance de
votar oficialmente num petista (só no PSOL), e os gaúchos põem a lulista
pra correr no segundo turno. O Sul parece continuar mais ou menos o
mesmo.
No
Sudeste, o Rio continua o mesmo, e São Paulo é um capítulo à parte.
Olhemos para Minas Gerais: esse importante estado, que por tanto tempo
aderiu à polarização paulista (vide Aécio e Pimentel), pôs já em 2016 na
sua capital um outsider; em 2018, pôs no governo do estado uma zebra
completa, e agora reafirma sua posição. O prefeito Kalil e o governador
Zema têm em comum o fato de serem empresários populares, de serem
outsiders, e de tentarem ter luz própria, em vez de se venderem como
bolsonaristas. Será uma tendência a ser repetida nacionalmente?
Kalil
ganhou pelo PHS em 2016, concorreu agora pelo PSD e ganhou no primeiro
turno. Em segundo lugar ficou um bolsonarista com quase 10%. Os
belo-horizontinos tiveram a chance de votar no primeiro ministro de
Direitos Humanos indicado por Lula, responsável por uma Cartilha do
Politicamente Correto. Ele ficou com 1,88%. O PSOL foi bem maior, e teve
8,33%.
Meu chute
Teríamos
sido espertos se prestássemos atenção à capital de Minas Gerais em
2016: ela prenunciava ruptura. Minas é aquele estado que sempre vota no
presidente eleito. É urbano e rural, é populoso e diverso.
Se
Minas sinalizar o futuro do Brasil, então teremos uma eleição mais
digital, mais pragmática, menos ideológica e mais pessoal. Com o
WhatsApp se criou um novo estilo de campanha menos impessoal, mais
formiguinha. De minha parte, acho um bom Brasil. Quem reagirá a ele?
Toda aquela elite empresarial-amiga inflada por São Paulo — vide a
herdeira da Andrade Gutiérrez financiando Boulos). Toda a imprensa
tradicional que não consegue sobreviver na internet. O funcionalismo,
classe inflada pelo PT.
A ver no que vai dar. De tédio, não morreremos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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