MEDIÇÃO DE TERRA

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MEDIÇÃO DE TERRAS

domingo, 20 de dezembro de 2020

A ciência é perigosa?

 



A propósito da (incentivada) hostilidade às vacinas, catei um post de 2010, neste blog já antigo, que reflete bem as posições anticientíficas:


A julgar pelas reações à pesquisa realizada por C. Venter sobre o sequenciamento genético, a ciência é perigosa. Em relação a esse temor, permitam-me citar alguns trechos do segundo capítulo de meu livro A cruzada contra as ciências (quem tem medo do conhecimento?), que talvez possam esclarecer alguns pontos.

"Na verdade, a ideia de que o conhecimento é perigoso está arraigada na nossa cultura. Já Adão e Eva, segundo a Bíblia, foram proibidos de alimentar-se dos frutos da “Árvore do Conhecimento”. Prometeu foi punido por ter dado o saber ao mundo. Na literatura, o Dr. Frankenstein é a imagem do cientista, mas pintado como um arrogante desalmado que de tudo é capaz para atingir seus objetivos, quaisquer que sejam as consequências. No cinema, é o gênio louco que produz monstros e catástrofes.

Imoral manipulador da natureza, o cientista também foi responsabilizado pela construção da bomba atômica e agora é visto com suspeita por causa da engenharia genética. Jornais e revistas publicam com frequência textos alarmistas que advertem sobre os “perigos” da pesquisa genética (lembre-se a histeria sobre a clonagem), do projeto do genoma humano e dos transgênicos (“comida-Frankenstein”). Nos títulos, invariavelmente, a insinuação de que o cientista “brinca de ser Deus”. O horror, porém, convive com o fascínio, já que se espera da ciência a solução para a cura do câncer, da Aids e de outras doenças que afligem o ser humano.

A análise desse problema nos remete, de novo, à separação moderna de fatos e valores, ou seja, de ciência e ética. Como processo de conhecimento racional e objetivo, a ciência não é guiada por valores, exceto os cognitivos (objetividade, sistematicidade, verdade etc.). Ela apenas procura nos mostrar o mundo tal como é. A ciência descreve, a ética prescreve; a ciência explica, a ética avalia ou julga. Ciência, portanto, não produz ética. Das proposições descritivas não é possível deduzir asserções prescritivas, como bem viu Hume. A separação de fatos e valores – conhecida justamente como “lei de Hume” – impede que do “é” derive o “deve”, que do “ser” derive o “dever ser”.

Ora, o conhecimento é um bem em si mesmo. Para o ser humano, conhecer é tão vital quanto alimentar-se, defender-se ou amar. Já a tecnologia, contrariamente, pode ser tanto uma dádiva quanto uma maldição. Há processos tecnológicos intrinsecamente perversos, como a fabricação de instrumentos de tortura (na Idade Média, por exemplo), de armas bacteriológicas etc. Não se trata do mau uso imprevisto de alguma área de conhecimento, tal qual seria o mau uso de um martelo ou uma tesoura. “A tecnologia da maldade é maldosa”, resume Bunge. Quando a pesquisa científica é posta em prática – por exemplo, em experimentos que envolvem seres humanos ou outros animais -, ou quando a ciência é aplicada à tecnologia, problemas éticos relevantes podem e devem ser suscitados.
(...)
A esta altura, impõe-se a questão sobre quais são, afinal, as responsabilidades e obrigações morais dos cientistas. Não há dúvida de que eles possuem deveres distintos das obrigações dos demais cidadãos. Posto que os cientistas detêm conhecimento especializado sobre como é e como funciona o mundo, e isto nem sempre é acessível aos outros, é obrigação deles tornar públicas as implicações sociais de seu trabalho e suas aplicações tecnológicas. Mas não cabe a eles, sozinhos, decidir sobre questões éticas ou morais. Há problemas que vão muito além de seu campo específico de competências.

O filósofo John Passmore observa que, quando a aplicação tecnológica das descobertas científicas é óbvia, tal como no caso de um cientista que trabalha com gases que afetam o sistema nervoso, esse cientista não pode alegar que nada tem a ver com tais aplicações, “sob o pretexto de que são os militares, e não os cientistas, que usam os gases para aleijar ou matar”. Para Passmore, além do mais, se um cientista “aceita financiamento de um órgão como um departamento de pesquisa naval, ele não está sendo honesto se sabe que seu trabalho não será útil para fins militares, e deve assumir parte da responsabilidade pelos resultados se sabe que sua pesquisa terá utilidade. Ele está sujeito (...) a elogios ou censuras em relação a qualquer inovação que provenha de seu trabalho”.

Todo empreendimento humano – especialmente a tecnologia – comporta riscos, mais elevados em algumas áreas que em outras. É necessário pesá-los e contrabalançá-los com os benefícios, o que demanda muita pesquisa. Mas, a pretexto de riscos e princípios éticos, muita gente quer impedir a própria pesquisa, ignorando que, sem riscos, um cidadão sequer atravessa a rua, e, sem pesquisa, jamais se saberá se eles são verdadeiros ou falsos. Existe uma assimetria brutal entre “esperança” (outro nome para “hipótese”, vá lá), que conduz a ações que submetem a teste suas motivações, e o temor, que conduz unicamente a vetos e restrições. Muitas esperanças não resistem ao teste da experiência e são refutadas, ao passo que os temores, subtraindo-se à possibilidade de refutação, tendem a se acumular, impedindo o avanço do conhecimento. Conjecturas e refutações, lembremos uma vez mais – e gostemos ou não -, constituem a base do método científico".
 
BLOG  ORLANDO  TAMBOSI

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