A propósito da (incentivada) hostilidade às vacinas, catei um post de 2010, neste blog já antigo, que reflete bem as posições anticientíficas:
A
julgar pelas reações à pesquisa realizada por C. Venter sobre o
sequenciamento genético, a ciência é perigosa. Em relação a esse temor,
permitam-me citar alguns trechos do segundo capítulo de meu livro A cruzada contra as ciências (quem tem medo do conhecimento?), que talvez possam esclarecer alguns pontos.
"Na
verdade, a ideia de que o conhecimento é perigoso está arraigada na
nossa cultura. Já Adão e Eva, segundo a Bíblia, foram proibidos de
alimentar-se dos frutos da “Árvore do Conhecimento”. Prometeu foi punido
por ter dado o saber ao mundo. Na literatura, o Dr. Frankenstein é a
imagem do cientista, mas pintado como um arrogante desalmado que de tudo
é capaz para atingir seus objetivos, quaisquer que sejam as
consequências. No cinema, é o gênio louco que produz monstros e
catástrofes.
Imoral
manipulador da natureza, o cientista também foi responsabilizado pela
construção da bomba atômica e agora é visto com suspeita por causa da
engenharia genética. Jornais e revistas publicam com frequência textos
alarmistas que advertem sobre os “perigos” da pesquisa genética
(lembre-se a histeria sobre a clonagem), do projeto do genoma humano e
dos transgênicos (“comida-Frankenstein”). Nos títulos, invariavelmente, a
insinuação de que o cientista “brinca de ser Deus”. O horror, porém,
convive com o fascínio, já que se espera da ciência a solução para a
cura do câncer, da Aids e de outras doenças que afligem o ser humano.
A
análise desse problema nos remete, de novo, à separação moderna de
fatos e valores, ou seja, de ciência e ética. Como processo de
conhecimento racional e objetivo, a ciência não é guiada por valores,
exceto os cognitivos (objetividade, sistematicidade, verdade etc.). Ela
apenas procura nos mostrar o mundo tal como é. A ciência descreve, a
ética prescreve; a ciência explica, a ética avalia ou julga. Ciência,
portanto, não produz ética. Das proposições descritivas não é possível
deduzir asserções prescritivas, como bem viu Hume. A separação de fatos e
valores – conhecida justamente como “lei de Hume” – impede que do “é”
derive o “deve”, que do “ser” derive o “dever ser”.
Ora,
o conhecimento é um bem em si mesmo. Para o ser humano, conhecer é tão
vital quanto alimentar-se, defender-se ou amar. Já a tecnologia,
contrariamente, pode ser tanto uma dádiva quanto uma maldição. Há
processos tecnológicos intrinsecamente perversos, como a fabricação de
instrumentos de tortura (na Idade Média, por exemplo), de armas
bacteriológicas etc. Não se trata do mau uso imprevisto de alguma área
de conhecimento, tal qual seria o mau uso de um martelo ou uma tesoura.
“A tecnologia da maldade é maldosa”, resume Bunge. Quando a pesquisa
científica é posta em prática – por exemplo, em experimentos que
envolvem seres humanos ou outros animais -, ou quando a ciência é
aplicada à tecnologia, problemas éticos relevantes podem e devem ser
suscitados.
(...)
A
esta altura, impõe-se a questão sobre quais são, afinal, as
responsabilidades e obrigações morais dos cientistas. Não há dúvida de
que eles possuem deveres distintos das obrigações dos demais cidadãos.
Posto que os cientistas detêm conhecimento especializado sobre como é e
como funciona o mundo, e isto nem sempre é acessível aos outros, é
obrigação deles tornar públicas as implicações sociais de seu trabalho e
suas aplicações tecnológicas. Mas não cabe a eles, sozinhos, decidir
sobre questões éticas ou morais. Há problemas que vão muito além de seu
campo específico de competências.
O
filósofo John Passmore observa que, quando a aplicação tecnológica das
descobertas científicas é óbvia, tal como no caso de um cientista que
trabalha com gases que afetam o sistema nervoso, esse cientista não pode
alegar que nada tem a ver com tais aplicações, “sob o pretexto de que
são os militares, e não os cientistas, que usam os gases para aleijar ou
matar”. Para Passmore, além do mais, se um cientista “aceita
financiamento de um órgão como um departamento de pesquisa naval, ele
não está sendo honesto se sabe que seu trabalho não será útil para fins
militares, e deve assumir parte da responsabilidade pelos resultados se
sabe que sua pesquisa terá utilidade. Ele está sujeito (...) a elogios
ou censuras em relação a qualquer inovação que provenha de seu
trabalho”.
Todo
empreendimento humano – especialmente a tecnologia – comporta riscos,
mais elevados em algumas áreas que em outras. É necessário pesá-los e
contrabalançá-los com os benefícios, o que demanda muita pesquisa. Mas, a
pretexto de riscos e princípios éticos, muita gente quer impedir a
própria pesquisa, ignorando que, sem riscos, um cidadão sequer atravessa
a rua, e, sem pesquisa, jamais se saberá se eles são verdadeiros ou
falsos. Existe uma assimetria brutal entre “esperança” (outro nome para
“hipótese”, vá lá), que conduz a ações que submetem a teste suas
motivações, e o temor, que conduz unicamente a vetos e restrições.
Muitas esperanças não resistem ao teste da experiência e são refutadas,
ao passo que os temores, subtraindo-se à possibilidade de refutação,
tendem a se acumular, impedindo o avanço do conhecimento. Conjecturas e
refutações, lembremos uma vez mais – e gostemos ou não -, constituem a
base do método científico".
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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