Pode ser que, a qualquer momento, a natureza de Bolsonaro fale mais
alto, mas o clima de Brasília desanuviou um pouco em razão desse mutismo
bolsonarista, observa editorial do Estadão. Quem assim permaneça!:
Desde sua posse, em janeiro do ano passado, praticamente não houve um
único dia em que o presidente Jair Bolsonaro não desse alguma
declaração que alimentasse o confronto com todos os que considera seus
rivais, reais ou imaginários. Construiu sua Presidência na base dessa
guerra permanente, para frenesi de suas hostes radicais e desespero do
resto do País. Entendimento, quando havia, era apenas circunstancial:
servia somente a algum propósito tático, sem qualquer expectativa de
construção de uma governança estável e sólida.
Eis então que, de uns dias para cá, o presidente decidiu silenciar.
Pode ser que, a qualquer momento, a natureza de Bolsonaro fale mais alto
e ele perca novamente as estribeiras, alinhando-se a manifestações
golpistas e desafiando as instituições republicanas, mas o fato é que o
clima de Brasília desanuviou um pouco em razão desse recente mutismo
bolsonarista.
O contexto indica que o silêncio do presidente provavelmente se deva
aos contratempos que ele, seus filhos, alguns de seus parlamentares de
estimação e empresários simpatizantes enfrentam na Justiça. A prisão de
Fabrício Queiroz, o notório ex-assessor de Flávio Bolsonaro, filho de
Bolsonaro e hoje senador, parece ter sido o fato determinante para que
ele afinal se recolhesse. Não se sabe o que o caso Queiroz pode revelar,
mas há suspeitas de traficâncias diversas que podem comprometer a
família presidencial – ao mesmo tempo que avançam inquéritos em outras
frentes, alguns dos quais tocados por um STF que já demonstrou
suficiente resiliência para resistir às estocadas bolsonaristas.
Alguém de bom senso no governo deve ter finalmente convencido
Bolsonaro de que a manutenção da estratégia de atrito queimaria as
últimas pontes com as instituições que têm poder de encurtar seu mandato
e também de punir crimes com os rigores da lei. E o que não faltam,
como se sabe, são motivos para embaraçar Bolsonaro.
Pode ser também que tenha ficado claro para o presidente que ele
talvez não disponha do apoio militar que julgava ter, a despeito de ter
se cercado de generais reformados e da ativa em seu Ministério e de, a
todo momento, referir-se às Forças Armadas como se estivessem a seu
serviço e respondessem a seu comando em qualquer circunstância.
Seja qual for a explicação, é forçoso reconhecer que a política
nacional vive raríssimo momento de calmaria. E isso bastou para dar à
gestão de Bolsonaro uma feição semelhante à de um governo. O presidente
acelerou a negociação com sua base parlamentar e, com isso, já há
movimentação para que o governo apresente projetos com vista à
recuperação do País depois da pandemia. Além disso, nomeou um ministro
da Educação que não só é considerado bem melhor do que o antecessor, o
que não é uma façanha, mas um que parece disposto ao diálogo com o
Congresso e com os Estados – algo que destoa frontalmente do
bolsonarismo radical, que havia tomado a Educação como sua cidadela.
Isso não significa nem que as negociações do governo com
parlamentares sejam necessariamente hígidas – pois têm envolvido
partidos conhecidos por seu notório apetite por cargos e verbas – nem
que os projetos governistas sejam realmente bons para o País. Contudo,
tendo em vista a paralisia quase total do governo, prisioneiro da
retórica incendiária de Bolsonaro e da ala lunática da Esplanada dos
Ministérios, trata-se de um avanço e tanto.
Depois de um ano e meio de mandato, o governo Bolsonaro, pelo menos
por alguns dias, começa finalmente a ser tratado, com alguma boa
vontade, como “normal”. Isso mostra que o foco de instabilidade do
governo e, por extensão, do País era o próprio presidente – que até
agora não havia descido do palanque e que tratava como desafetos todos
os que não o aceitassem como o “messias” que veio salvar o Brasil.
Nada garante que o presidente não sofrerá alguma recaída em breve,
especialmente porque os processos judiciais que decerto o deixam nervoso
correm independentemente de sua vontade ou de qualquer gesto seu – e
assim devem continuar, tirando o sono de quem tem contas a acertar com a
Justiça. Mas, graças à calmaria aparente, o País tem a oportunidade,
finalmente, de aquilatar o trabalho do presidente da República pelo que
é, sem a distração constante dos ruídos causados pela sua lamentável
capacidade de alimentar polêmicas inúteis e de menosprezar a democracia.
Se o julgamento lhe será favorável, são outros quinhentos.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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