Abrimos mão de controlar a pandemia e o vírus está nos levando para onde
deseja. Artigo do biólogo Fernando Reinach, colaborador do Estadão:
Navegar ao sabor do vento significa içar vela e deixar que o vento
nos leve para onde soprar. É abrir mão de comandar o futuro. O Brasil
está navegando ao sabor do vírus.
Abrimos mão de controlar a pandemia e o vírus está nos levando para
onde deseja. Talvez mais lentamente do que poderia, pois não levantamos
completamente a vela: lavamos as mãos, usamos máscaras e fazemos um
mínimo de isolamento. Sem dúvida estamos caminhando em direção à
tragédia, mas em câmera lenta, e não temos planos para retomar o
controle. É a consumação da estratégia que chamei em 9 de maio de imunidade de rebanho por incompetência.
Ao sabor do vírus a pandemia no Brasil só terminará quando atingirmos
a imunidade de rebanho, o único mecanismo biológico conhecido que inibe
a propagação do vírus sem intervenção humana. Navegar ao sabor do vírus
pode custar a vida de até 1% dos contaminados. A imunidade de rebanho
geralmente ocorre quando 70% a 80% da população suscetível tiver sido
infectada. Talvez ocorra antes, mas chegaremos lá antes de a vacina
estar disponível. Isso é quase uma certeza. Quais são as evidências de
que navegamos ao sabor do vírus? O gráfico abaixo, cortesia do meu amigo
Cal, mostra nossa rota desde a chegada do vírus no Brasil (ver no Estadão).
No eixo vertical estão os números de novos casos por dia, por milhão
de habitantes, em cada um de quatro países. Os dados diários foram
plotados como uma média móvel de sete dias. O Brasil registra hoje por
volta de 150 novos casos, a cada dia, por milhão de habitantes (sem
contar as subnotificações), um número maior que os 90 registrados nos
Estados Unidos. No eixo horizontal estão os dias que se passaram desde
que cada país registrou um caso por milhão de habitantes. Isso ocorreu
quando o Brasil registrou 220 novos casos por dia, os EUA, 330, o Reino
Unido, 66, e a Itália, 60.
É fácil observar como a Itália, após um crescimento rápido do número
de casos por dia, impôs um lockdown rigoroso após o dia 30 e tomou
controle do barco. Passados 90 dias, estava com a pandemia sob controle.
O Reino Unido demorou para responder e o lockdown veio mais tarde. Mas
desde o dia 60 conseguiu reduzir o número de novos casos por dia. Os EUA
também se assustaram com o crescimento rápido dos novos casos,
implementaram um lockdown nas principais cidades, conseguiram
estabilizar o número de novos casos, mas quando começaram a tomar pé da
situação relaxaram o distanciamento social. Os resultados da abertura
são gritantes, o crescimento rápido do número de novos casos por dia já
está ocorrendo.
O mais impressionante é o barco brasileiro. Medidas brandas de
distanciamento social retardaram o crescimento da pandemia, que cresceu
lenta e livremente por 80 dias. Quando as medidas estavam começando a
fazer efeito, veio o relaxamento do distanciamento social e a pandemia
voltou a crescer mais rapidamente do que antes, totalmente fora de
controle.
O pior no Brasil é que simplesmente não temos um plano para controlar
esse crescimento. O exemplo mais claro dessa atitude é o anúncio da
abertura das escolas no Estado de São Paulo. Ele deve ocorrer no início
de setembro caso todas as áreas do Estado estejam com níveis de
propagação classificadas como verde já no início de agosto. O problema é
que não foi anunciado simultaneamente um plano capaz de garantir que o
Estado de São Paulo atinja essa condição no início de agosto. Sem
executar algum plano seguramente não chegaremos lá, pois São Paulo está
batendo todos os dias os recordes de novos casos por dia e número de
mortes por dia. Ou seja, as escolas não abrirão em setembro se o governo
cumprir o que decretou.
Até agora as medidas anunciadas são inócuas para controlar a
pandemia. Oferecer mais leitos de UTI ajuda os pacientes graves, o que é
importante, mas não diminui o número de casos. E esse aumento tem
limite, que eram respiradores, mas de agora em diante serão
profissionais da saúde capazes de atender um número crescente de leitos.
Liberar gradativamente as atividades ao menor sinal de desocupação de
leitos vai seguramente na direção oposta do controle, pois cada
liberação significa levantar um pouco mais a vela desse barco que navega
ao sabor do vírus.
E a testagem em massa? Ela tem sido um fracasso em nosso Estado e em
todo o País. Os governos sequer detalham o que significa esse termo e
como ele pode levar ao controle da pandemia. O número de testes de
RT-PCT, que detectam pessoas durante a fase em que estão transmitindo o
vírus, e podem ser usados para isolar pessoas que estão transmitindo a
doença, são executados em número ínfimo. Pululam iniciativas
governamentais baseadas em testes sorológicos, que, sabemos muito bem,
somente identificam pessoas que já passaram pela fase crítica da doença e
já contaminaram quem deveriam contaminar. São inúteis para controlar a
doença e uma bênção para o vírus.
Em suma, não existe nenhuma medida em andamento que tenha alguma
chance de reverter o andamento da pandemia nos próximos meses. Nenhuma.
A impressão é que nossos governantes esperam por algum milagre,
alguma intervenção divina que provoque a diminuição do espalhamento da
doença de maneira mágica, sem que eles tenham de executar algum plano
que tenha embasamento científico. Como a fração da população já
infectada ainda é baixa, não existe nada no horizonte que vai conter o
crescimento diário do número de novos casos em 2020. Estamos navegando
ao sabor do vírus com a vela a meio mastro.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário