Pessimismo diante da Covid-19 diz mais sobre nós mesmos, que nos
distanciamos da morte, e sobre o mundo contemporâneo, que acha que tem o
controle de tudo. Theodore Dalrymple, via First Things, em texto
traduzido para a Gazeta:
Um sábio reconhece que tem de pôr as coisas em perspectiva, mas um
homem mais sábio ainda reconhece sob qual perspectiva ele deve analisar
as coisas. Um médico que diz à viúva de um paciente que acabou de morrer
que a morte do marido dela é só uma entre as 2.800.000 mortes anuais
nos Estados Unidos (e 56 milhões no mundo todo) é um monstro insensível.
Mas um epidemiologista que tenta expressar compaixão por toda morte que
enumera jamais irá além da primeira tabela estatística. A perspectiva
certa muda de acordo com o contexto.
Qual a perspectiva correta sob a qual o cidadão comum deve analisar a
pandemia atual de coronavírus, supondo que haja uma única perspectiva
correta? A maioria das pessoas alterna complacência e pânico. São como
investidores que acompanham as flutuações do mercado de ações com uma
atenção febril. Um gráfico mostrando um aumento exponencial na
quantidade de casos leva a um estado de ansiedade; um histograma
mostrando uma queda no número de mortos no dia anterior leva a surtos de
alívio de que o pior já passou.
Siga o que dizem os cientistas, você pode pensar; este é o caminho
para se tornar um ser humano completamente racional. Quanto a isso, a
ciência fala com uma única voz que se considera infalível. Ela
estabelece uma doutrina que a Humanidade, boa parte da qual não
cientificamente educada, deve aceitar com humildade. Mas claro que nem o
mundo nem a ciência não assim.
Confinado ao meu apartamento em Paris (como um verdadeiro
prisioneiro, posso sair para uma hora de exercícios por dia), acabo de
ler dois livros obviamente relevantes para a situação atual: “The Rules
of Contagion”, de Adam Kucharsk, epidemiologista matemático da London
School of Hygiene & Tropical Medicine; e “Épidémies: vrais dangers
et fausses alertes” [Epidemias: perigos reais e alarmes falsos], de
Didier Raoult, um dos mais importantes especialistas em doenças
contagiosas do mundo. Não se questiona o prestígio científico dos
autores, embora eles discordem como um militante secularista discorda de
um tecnocrata.
O leigo que estiver se esforçando para ser racional geralmente se vê à
mercê da mais recente opinião especializada que leu ou ouviu. Raoult
pode muito bem arruinar sua reputação por sua defensa ruidosa e
totalmente não-científica do tratamento com hidroxicloroquina, enquanto
Kucharski não reconhece os limites da epidemiologia, que não só costuma
ser uma ciência inexata como, no pior dos casos, pode se transformar num
poderoso instrumento de controle da população por parte dos burocratas.
Medo que não faz sentido
Raoult questiona os modelos matemáticos epidemiológicos cujo
histórico de acerto é errático, para não chamar de outra coisa. Ele cita
várias epidemias recentes, entre elas duas gripes aviárias, a doença da
vaca louca, Ebola, chikungunya, Zika, SARS e MERS, para as quais os
epidemiologistas criaram modelos assustadores, e diz:
As previsões e os modelos matemáticos para todas essas doenças anunciavam a morte de milhões de pessoas. Nada disso ocorreu, exceto por uma epidemia de gripe não mais letal do que as outras gripes.
Erros do tipo que ele descreve não são apenas intelectualmente
importantes; eles têm consequências práticas graves naquilo que podemos
chamar de mundo real. Eles direcionam os esforços médicos, desviando-os
de problemas maiores. Raoult calcula que, para cada morte causada pelas
doenças acima mencionadas, há 61 artigos científicos em periódicos
médicos. O pânico é geralmente mais perigoso do que o que o originou.
Entre as doenças que Raoult considera ter causado um impacto
sanitário menor, em termos estatísticos, está a Covid-19. (O livro dele
foi publicado em março). Ele tem razão ou está sendo descuidado? Como o
leitor lego pode decidir? Confesso que me vejo num estado de dissonância
cognitiva — e é claro que não estou sozinho nisso — quando leio que as
populações como um todo mal foram afetadas, se é que foram, pela
pandemia, e ao mesmo tempo vejo em todos os lugares matérias confiáveis
de cenários apocalípticos sem precedentes nos hospitais. Claro que os
piores cenários são localizados. Nenhuma epidemia atinge todos os
lugares com a mesma força. Mas essa pandemia não é a Peste Negra, que
matou um terço da população europeia e que ninguém na época considerou a
ameaça à existência da espécie que ela obviamente foi.
O pânico mundial quanto à Covid-19 nos diz algo sobre nós mesmos e
sobre o mundo contemporâneo? Em 1957, a gripe asiática teria matado 2
milhões de pessoas, enquanto a gripe de Hong Kong de 1968 teria sido
responsável pela morte de um milhão de pessoas, e ainda assim elas
passaram incólumes pela memória coletiva. Além disso, de acordo com
Raoult, o pânico quanto a possíveis pandemias é cada vez mais frequente.
Por quê, já que a expectativa de vida média é a maior da história?
Seria o pânico um sintoma da nossa distância cada vez maior em relação à
morte como o fim natural da vida?
Um dos problemas é que o medo não é proporcional ao risco nem quando
se sabe precisamente qual o risco. Por mais que nos digam que o avião é o
meio de transporte mais seguro que existe, quem é que não sente um quê
de medo quando aquele tubo de metal se aproxima do chão a 200km/h? As
estatísticas de mortes em acidentes aéreos não nos acalmam totalmente.
Claro que o pânico em relação à Covid-19, supondo que ela continue
sendo uma pandemia de consequência relativamente menor na mortalidade
geral da população mundial, se deve em parte ao caráter apocalíptico da
morte provocada pela doença. Se em vez de um sofrimento desses o doente
simplesmente fosse dormir e não acordasse, a pandemia mal seria notada,
sobretudo pela imprensa, ainda mais porque as mortes ocorrem
predominantemente entre os mais velhos. Apegado que sou à vida, não
ignoro que a morte na minha idade não seria tão trágica quanto a morte
de uma pessoa de vinte anos.
A Covid-19 sem dúvida será dominada a tempo; haverá uma vacina e
talvez um tratamento. Mas ela terá afetado a crença, ou ilusão, da
Humanidade de que ela tem tudo sob controle, mesmo tendo vislumbrando a
possibilidade de uma vida sem o sofrimento, o desagradável ou o
imprevisto. Depois que a pandemia passar, a ciência terá ganhado força,
mas perdido alcance.
Lembro-me de um tempo anterior ao colapso do Lehman Brothers (o
epidemiologista Adam Kucharski menciona isso), quando os matemáticos
diziam ter desenvolvido um modelo capaz de eliminar o risco de colapso
sistêmico no setor de hipotecas. Isso, claro, se provou ilusório, e
sempre foi uma tolice; mas se a analogia é possível, isso também sugere
que a ilusão de controle retornará em breve, assim que a pandemia
terminar. A ilusão já nasce eterna.
Quem não gosta de uma catástrofe?
O catastrofismo é o reverso da ideia de controle total. Podemos
alternar entre um e outro sem passar pelo realismo, assim como somos
capazes de ver um desenho que pode ser interpretado como um pato ou
coelho, mas nunca os dois ao mesmo tempo. A utopia de hoje é a distopia
do amanhã. Os cenários pessimistas atraem a mente humana, sobretudo em
tempos de segurança. (Cheguei aos meus setenta anos sem ter passado por
guerra, opressão ou ameaça séria à minha saúde, algo provavelmente sem
precedentes na história humana). A literatura e o cinema provam nosso
amor pelas catástrofes.
O realismo, por outro lado, é chato e desinteressante. O conforto
gosta do perigo, desde que ele não seja uma ameaça imediata. Não posso
provar, claro, mas até sinto um quê de deleite nas matérias sobre mortos
por Covid-19. As Cassandras profissionais (entre as quais, num contexto
diferente, me incluo) gostam de poder dizer “eu avisei”. É mais
prazeroso estar certo quanto a um desastre futuro do que num cenário de
melhora geral das condições. Possivelmente haverá uma ligeira decepção
quando tudo voltar ao normal. Como ocuparemos nossas mentes quando isso
acontecer?
*Theodore Dalrymple é médico e escritor britânico, com várias obras traduzidas no Brasil.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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