Controlando certas palavras e abolindo outras, será possível refundar a natureza humana. Coluna de João Pereira Coutinho, via FSP:
1. Soube através desta Folha que o ônibus não está mais lá. Falo do
ônibus que fez sucesso no filme "Na Natureza Selvagem", uma obra-prima
inesperada dirigida por Sean Penn. O ano era 2007 e foi uma das melhores
introduções ao pensamento utópico que tive na vida.
Então encontramos Chris McCandless (um notável Emile Hirsch) que está
cansado da civilização. Tudo é uma mentira aos seus olhos: os pais, a
escola, os amigos. O capitalismo. O mundo.
Ele, que procura uma forma laica de santidade, decide partir,
abandonar o carro algures. E avançar para o Alasca, onde encontrará a
solidão mais radical.
O ônibus aparece nas sequências finais, quando Chris passa a
habitá-lo, a dormir nele, a comer, a ler. Mas o corpo, macilento e
frágil, começa a não suportar os rigores do estado da natureza. Nem o
corpo nem a alma, sobretudo quando Chris, lendo Tosltói, encontra a
frase mais luminosa e mais terrível: "A felicidade só é real quando é
partilhada".
Confrontado com esse pensamento, o rosto de Chris é consumido por um
esgar de dor – física e metafísica. Na sua busca de uma pureza
imaginária, ele acreditou na sua autossuficiência narcísica e foi sempre
cego à presença e à generosidade dos outros. Mas agora é tarde, não há
retorno.
Depois do filme, o ônibus converteu-se em atração turística e vários
imitadores de Chris procuraram alcançar esse nirvana no Alasca. Alguns
morreram.
De duas, uma: ou não entenderam a mensagem do filme e o seu terrível
final; ou entenderam, mas o apelo do martírio falou mais alto. Não há
paixão mais funesta do que a paixão que sentimos pela nossa própria
virtude.
Que o digam os novos zelotes do momento, que pretendem submeter a
história, a arte, o pensamento e todas as opiniões heterodoxas ao
julgamento inquisitorial do presente.
Tal como Chris McCandless, eles são imunes à ambiguidade, à
complexidade ou à compaixão. Querem começar do zero, transformando o
presente no Alasca.
Nesse sentido, o filósofo John Gray tem razão quando, recentemente,
em artigo para o site UnHerd, desautorizou qualquer comparação entre a
violência dos "wokes" e a violência clássica dos bolcheviques.
Para Lênin, a violência era só um meio para atingir um fim – a famosa sociedade sem classes da teologia marxista.
Para os "wokes", a violência é um fim em si – um momento terapêutico,
ou catártico, que tem como objetivo libertar o mundo do pecado.
Se existe uma comparação válida, acrescenta Gray, é entre os "wokes" e
os milenaristas medievais, que aterrorizaram a Europa com o mesmo tipo
de infalibilidade moral.
A grande diferença é que os milenaristas congregavam os pobres e
ofendidos que habitavam a miséria rural ou o "bas-fond" das cidades da
Baixa Idade Média.
Os milenaristas de hoje provêm da burguesia urbana, letrada e
afluente. Exatamente como o personagem do filme, Chris McCandless, para
quem o privilégio e o conforto eram as marcas do demônio.
2. Leio na imprensa que Minnesota removeu das suas escolas "O Sol É
para Todos", de Harper Lee, e "As Aventuras de Huckleberry Finn", de
Mark Twain. Pelas razões conhecidas: existem expressões racistas nessas
obras de ficção – e quanto mais depressa elas forem expurgadas do espaço
público, mais depressa o racismo propriamente dito acabará por
desaparecer.
A lógica é totalmente orwelliana, porque essa é a mensagem de "1984",
um romance que, sintomaticamente, virou best-seller no mundo inteiro,
Brasil incluso: a tirania sobre o mundo começa sempre pela guerra à
linguagem. Controlando certas palavras e abolindo outras, será possível
refundar a natureza humana.
Como afirma um dos personagens mais sinistros de "1984", o
inesquecível Syme, o assalto à linguagem tem como objetivo "restringir o
campo do pensamento". E acrescenta, deliciado: "Ano após ano, [haverá]
cada vez menos palavras, e o alcance da consciência [será] cada vez mais
limitado".
Sem termos acesso à linguagem do passado, viveremos literalmente na
inconsciência. Até acordarmos um dia e, como o personagem Winston,
sentirmos apenas a memória difusa e ancestral de que houve um tempo de
liberdade em que as coisas eram diferentes.
BLOG ORLANDO TAMBOSI

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