Bolsonaro não tem dúvida nenhuma. Para ele, 'algo de muito grave está
acontecendo com nossa democracia'. Sim, está - mas a democracia está
reagindo. Editorial do Estadão:
Foi aos gritos que o presidente Jair Bolsonaro informou a seus
concidadãos que não tolerará mais “um dia igual a ontem” - em referência
à quarta-feira passada, quando a Polícia Federal, por ordem do ministro
do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, fez buscas em
residências de militantes bolsonaristas suspeitos de integrar uma
organização criminosa destinada a intimidar integrantes daquela Corte.
Segundo ele, “ordens absurdas não se cumprem”. Diante de declarações tão
peremptórias por parte do presidente - na prática, um ultimato -, é o
caso de perguntar o que acontecerá se “um dia igual a ontem” se repetir.
Como é certo que teremos muitos outros dias como esse, das duas uma:
ou o presidente não fará nada, posto que numa democracia nada há a fazer
a não ser respeitar as ordens judiciais, ou partirá para a
desobediência - prenúncio de um golpe que muitos bolsonaristas desejam
ardentemente deflagrar. Para o deputado Eduardo Bolsonaro, um dos filhos
do presidente, o segundo cenário é o mais provável. Referindo-se a “um
momento de ruptura”, disse: “Não é mais uma questão de se, mas de quando
isso vai acontecer”.
Ao que parece, contudo, a escalada retórica do chefe do Executivo, de
sua família e dos camisas pardas bolsonaristas começa a encontrar
resistência mais firme entre militares da ativa e da reserva, inclusive
os que integram o governo. “Quem é que vai dar golpe? As Forças Armadas?
Que é que é isso? Estamos no século 19?”, reagiu o vice-presidente
Hamilton Mourão em entrevista ao site G1. Para o general da reserva,
essa ruptura prenunciada por Eduardo Bolsonaro está “fora de cogitação”.
Embora tenha dito que não falava pelas Forças Armadas, Mourão afirmou
conhecer o ânimo militar e declarou: “Não vejo motivo algum para um
golpe”.
Na mesma linha, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional,
Augusto Heleno, que também é general da reserva, declarou que “ninguém
está pensando em golpe” e que “intervenção militar não resolve nada” -
um recuo e tanto para quem antevia “consequências imprevisíveis” caso o
Supremo continue a tomar decisões contrárias ao presidente.
Em artigo para o Estado, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz,
ex-ministro da Secretaria de Governo, disse que as Forças Armadas “não
se deixarão tragar e atrair por disputas políticas nem por objetivos
pessoais, de grupos ou partidários”. O general Luiz Eduardo Ramos também
garante enfaticamente que as Forças Armadas não pensam em golpe, antes
repelem a ideia.
Se é assim, cabe então aos militares desarmar os espíritos no Palácio
do Planalto, a começar pelo próprio presidente, pois é ele que
contribui decisivamente para ampliar o clima de ruptura - muito
conveniente para seu projeto autoritário de poder. Nesse projeto - que
tem no chavismo seu estado da arte -, as instituições e órgãos de Estado
convertem-se em forças auxiliares do presidente, seja para perseguir
inimigos, seja para dar completa liberdade de ação ao governo. Foi isso o
que o ex-ministro da Justiça Sérgio Moro denunciou quando pediu
demissão.
Essa deliberada confusão só é possível com uma interpretação ardilosa
dos valores democráticos. Para o bolsonarismo, por exemplo, a liberdade
de expressão, quando invocada pelo presidente e seus devotos, é uma
licença para cometer crimes diversos, como injúria e ameaça a ministros
do STF.
Tudo isso, é claro, serve para que Bolsonaro se passe por vítima e,
assim, dê substância ao discurso segundo o qual suas ações deletérias
são uma necessária reação a supostas agressões de seus inimigos. Para
Bolsonaro, por exemplo, o inquérito do STF resultou de “atitudes de
certas pessoas individuais (sic)” - como se este ou aquele ministro do
Supremo tivesse tomado decisões apenas para confrontá-lo.
Se tiver alguma dúvida sobre a lisura do inquérito do STF, no
entanto, o presidente pode consultar o que já escreveu a esse respeito
seu atual ministro da Justiça, André Mendonça. Embora hoje veja as
investigações como um potencial risco à democracia, Mendonça, quando era
advogado-geral da União, informou que o inquérito tinha total respaldo
na Constituição - no que estava absolutamente correto.
A questão é que Bolsonaro não tem dúvida nenhuma. Só certezas - como a
de que todos devem se curvar a suas vontades. Para Bolsonaro, “algo de
muito grave está acontecendo com nossa democracia”. Sim, está - mas a
democracia está reagindo.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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