Valentina de Botas, via Augusto Nunes:
Preciso
de um pouco de barulho para me concentrar, o silêncio me faz ouvir
coisas e me leva para longe do agora. Trabalhando na revisão ou na
tradução de um texto, abro a janela para as polifonias do mundo ou ouço
música. Também para missões domésticas: lavar a louça, por exemplo, ao
som de “Por uma Cabeza” com Gardel; ou cantarolar qualquer coisa da
Clara Nunes enquanto cozinho. Senão, perco o foco, solto a âncora, o
pensamento voa, a imaginação visita pessoas, passados, futuros e tal.
Neste domingo, trabalhava ao computador, assistia ao jogo Brasil x Suíça
na TV e acompanhava alguns comentários pelo Twitter. O empate foi ruim e
errar passe no meio do campo é coisa com que eu, pessoalmente, não sei
lidar; mas terá sido bom se a Seleção se ligar e o Tite der uma daquelas
comidas-vocês-sabem-do-que motivacionais.
Acho
lindo até gol feio, imagine um golaço como o do Philippe Coutinho. Cismo
com isso de o jogador de futebol ter nome chique. Nosso futebol foi
piorando conforme os nomes ficaram enjoados, não foi? Foi. As conversas
no Twitterdeixaram o jogo mais interessante e, claro, a atuação do juiz
as movimentou. No gol da Suíça, vi mais surpreendente falta de malícia
num jogador experiente como o Miranda, mas aquilo no Gabriel Jesus, seu
juiz, foi pênalti. Dá para recuperar, é frustrante, mas nada comparável
ao erro inesquecível do juiz, como tudo o mais na Copa de 1982, naquela
saga dilacerante entre Brasil e Itália: o pênalti não marcado do
Gentille no Zico. A primeira Copa que acompanhara foi a de 1978, na
Argentina, em que o Brasil se sagrou um desconsolado campeão moral. Eu
era bem meninota, desperta para o futebol no ano anterior quando o meu
Corinthians grande, sempre altaneiro, foi campeão depois de 23 anos, na
noite eterna de 13 de outubro de 1977. O gol da vitória marcado pelo
Basílio foi, para mim, o cartão de visita do Sobrenatural de Almeida.
Não saberemos nunca da História que não houve, talvez se o juiz tivesse
dado o pênalti do Gentille em vez do impedimento inexistente do Zico, a
Itália desclassificasse o Brasil do mesmo modo. O que sei é que, naquela
tarde no Sarriá, a linda camisa amarela rasgada ensinava a uma garota
que a possibilidade de um juiz idiota estragar tudo não torna o futebol
menos fascinante.
Boulos para intelectuais
“O uso
do vídeo na arbitragem da Copa mostra que juiz de futebol não é Deus e
pode falhar. O Judiciário brasileiro deveria aprender com isso, ainda
mais com tantos juízes que tem time político escancarado. Pode isso,
Arnaldo?”
Esse é o tuíte que Guilherme Boulos postou neste domingo, depois do jogo Brasil x Suíça. Com base nele, responda se puder:
1)
Pensemos na metáfora de Karl Marx ─ aquela grande besta quadrada,
segundo o mestre Nelson Rodrigues ─, “tudo o que é sólido se desmancha
no ar”, registrada no Manifesto Comunista, publicado em 1848, sobre os
acontecimentos que abalavam as certezas daquele conturbado século.
Segundo Boulos ─ a quem a definição rodriguiana para Marx estaria bem
aplicada ─, subjacente à metáfora marxista, o uso do vídeo na arbitragem
da Copa:
Desfez a sólida certeza de que juízes de futebol são Deus e, por isso, falíveis;
Dá aos juízes a liberdade e o poder de, não sendo Deus, falharem;
Tanto faz, desde que soltem Lula.
2) Marx,
Nietzsche, Freud e Weber acreditavam fazer questionamentos das
religiões e de Deus quando faziam apenas críticas das representações
sociais das religiões e de Deus. Esta fratura epistemológica expõe sua
falha na abordagem desses temas. Tendo isso em mente e a afirmação de
Marx, constante na introdução da Crítica da filosofia do direito de
Hegel (1844), segundo a qual “a religião é o suspiro da criatura
oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem
alma; a religião é o ópio do povo”, discuta:
Estaria
Boulos sentindo-se num mundo sem coração depois da prisão de Lula e,
então, substituindo o presidiário-ópio da escória por Deus que, como
atesta o tuíte epifânico, acaba de se revelar como infalível ao
revolucionário de butique?
3) Ao
afirmar que “o Judiciário brasileiro deveria aprender com isso”, Boulos
emprega o dêitico ─ do grego deíkticos (aquele que mostra, demonstra) ─
“isso” para demonstrar que:
O Judiciário brasileiro deveria usar vídeos;
O Judiciário brasileiro deveria recorrer a Deus;
O Judiciário brasileiro deveria organizar uma Copa do Mundo;
O Judiciário brasileiro deveria prender o juiz da partida Brasil x Suíça porque Boulos descobriu que ele não é Deus;
O Judiciário brasileiro é falível porque o Brasil não ganhou o jogo.
4) No
trecho “ainda mais com tantos juízes que tem (sic) time político
escancarado”, Boulos se apropria da releitura de Lênin sobre a teoria
marxista; contrariando o postulado original, o russo acreditava que a
revolução proletária resultaria das contradições do capitalismo, não
mais de um processo em que a marcha da história levaria ao
aperfeiçoamento do homem, passando pelo socialismo e culminando no
comunismo ─ esta desgraça que só deu errado onde foi tentada ─; ainda
que usando elementos da doutrina marxista, Lênin pretendeu acelerar a
história criando a vanguarda revolucionária para que esta chacoalhasse a
árvore dos acontecimentos fazendo a revolução despencar na consciência
das classes proletárias. Sem conseguir o mesmo, o PT chacoalhou a árvore
dos acontecimentos aparelhando o Estado, notadamente o Judiciário,
assim este trecho do tuíte revela que para Boulos:
Juízes com time político escancarado deveriam ser todos petistas e soltar Lula;
Juízes com time político escancarado só poderiam assistir à Copa se soltassem Lula;
Juízes podem ter time político, mas não escancarado, e soltar Lula;
Juízes com time político escancarado deveriam acreditar em Deus, saber que juiz de futebol é falível e soltar Lula;
Juízes… não importa, desde que soltem Lula.
Entre a boçalidade e a chatice
Escolheu
ambas quem politizou o futebol, afirmando que somos mais felizes quando
sabemos o nome dos 11 do STF, e não os da Seleção. Poderia ao menos
falar só por si, mas essa gente cansativa tem a síndrome do porta-voz,
acha que representa a coletividade, vai até o limite do ridículo e dá
mais um passo: detesto saber o nome e o que faz o ministro Barroso, por
exemplo, queria saber mais do Philippe Coutinho. Ao contrário dos
jogadores, juízes/ministros bons são os ignorados. Houve quem dissesse
que o pior não é empatar com a Suíça no futebol, mas perder para ela por
7 x 1 na saúde, educação, segurança. Fiquei só pensando. No futebol, é
ruim, sim, empatar com a fraca Suíça e o resultado do jogo é
determinante só para a Copa, não para a saúde, a educação e a segurança
públicas brasileiras; nossos dramas nessas áreas continuarão exatamente
onde estão: fora do futebol. A pessoa que acha pertinentes paralelos
entre Berna e Carapicuíba deve pensar que fica parecendo mais
inteligente, mas é só uma boçal na politização/problematização de tudo o
tempo todo, do sexo às marchinhas de Carnaval, do uso de turbantes ao
futebol, esvaziando essas coisas de suas dimensões e dinâmicas
específicas. Patrulheiro. Falsificador. Empobrecedor. Cansativo.
Pedante. Artificial. Inútil. Se não houver reação, o país ficará cada
vez mais chato, careta e imbecilizado.
E se não fosse tua filha?
Um bando
de brasileiros sórdidos se divertiu ─ Deus do céu! ─ envergonhando os
conterrâneos civilizados, desrespeitando os anfitriões da Copa e
humilhando uma moça russa. Há quem não veja vestígio algum nessa
sordidez: tudo em nome dessa coisa difusa, da compulsiva alegria
tropical que faz o brasileiro estar-de-bem-com-a-vida, como estão
dizendo os adeptos da sordidez. Enquanto muitos brasileiros ficaram
enojados, não poucos acharam que o repúdio não passa de um surto de
puritanismo por parte dos críticos. É esta nossa difusa brasilidade
euro-nagô malemolente, um álibi fajuto para nossa incivilidade e remédio
ineficaz para uma libido patológica cujo gozo misógino reduz uma pessoa
inteira à b*ceta rosa. Os sensatos ainda tentam fazer o sórdido se
voltar para o lado civilizatório: cara, mas e se fosse com tua filha,
tua mulher, tua mãe, tua amiga? Não vou por aí, minha questão é outra: e
se ela não fosse tua filha, nem tua mãe, nem tua mulher, nem tua amiga,
irmã, etc.? Fosse o que ela é: um indivíduo com direito à
individualidade sem que esta fique condicionada a papéis de mãe, esposa,
irmã, etc. Ponto. Uma pessoa que, igual a você, assim se constitui
antes de assumir qualquer papel e merece não ter sua individualidade
assaltada por um bando sórdido.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário