Contra a sensação esmagadora do abandono, criamos seres imaginários. Texto de Luiz Felipe Pondé, via Gazeta do Povo:
Por que as pessoas
tentam de forma tão desesperada negar o desamparo em que nós, seres
humanos, existimos? Esse desamparo é, antes de tudo, cósmico: o universo
é indiferente a nós. Ao contrário dos que creem na infantil ideia de
que o “universo conspira a nosso favor”, o universo está, na verdade,
pouco se lixando pra nós, ele é cego.
É fácil identificar a
causa desse horror ao desamparo, não? O desamparo é insuportável. Seja
em que nível for, ele é insuportável. Esse caráter insuportável,
seguramente, impõe-se ao nosso pensamento e às nossas sensações. O
resultado é que acabamos por crer em seres imaginários que nos auxiliam
na fuga dessa sensação esmagadora de desamparo. Mas vamos por partes. O
tema pede fôlego e reverência.
Eurípedes, trágico
grego que viveu no século 5.º a.C., pergunta-se na peça Hécuba (esposa
de Príamo, rei de Troia) se os deuses para os quais rezamos de fato
existem ou se a realidade não seria apenas fruto da contingência cega.
Eu creio na segunda
opção. O que não implica – como bem nos diz o filósofo John Kekes
(nascido em Budapeste, em 1936, e hoje residente nos EUA), em seu
maravilhoso The Human Condition (“A Condição Humana”), de 2010 – o fim
do mundo. Como não? Porque somos inteligentes e morais, podemos, ainda
que de modo precário, cuidar da vida em meio à contingência.
Assim como Eurípedes,
Freud (1856-1939) meditava sobre essa questão. No seu Futuro de uma
Ilusão, de 1927, Freud reflete sobre o desamparo como fonte primária da
busca religiosa e espiritual. “Ilusão” aqui, como entende a fortuna
crítica, é a religião.
Mas, creio, podemos
ampliar essa ilusão para qualquer forma de negação de desamparo. E aí
abandonamos a ilusão de que, resolvida a crença religiosa, teremos
resolvido o peso psíquico, moral, social e político do desamparo. E,
como consequência, poderíamos refletir um pouco melhor sobre o presente
dessa “ilusão” e o horror do desamparo hoje. O que você crê ou faz para
lidar ou negar o desamparo?
Para Freud, a ilusão
religiosa se sustenta numa espécie de processo psíquico regressivo em
direção à experiência primitiva com os pais como defensores dela contra
uma realidade hostil (cheia de “contingências”). Esses pais seriam o
elemento intermediador entre essa contingência cega que a criança começa
a perceber como realidade do mundo à sua volta e ela mesma. O que é
essa contingência cega?
“Contingência” (está
na moda a palavra inglesa “randomness”) é o nome que damos para tudo o
que parece estar fora de nosso controle ou de qualquer padrão aparente
de organização. Pode ser bom ou ruim. De forma comum, quando é bom,
dizemos que é uma bênção ou uma graça. Quando é ruim, dizemos que é
azar.
Na experiência
infantil, os pais, quando funcionais, protegem a criança dos efeitos
dessa contingência cega, sendo eles mesmo, às vezes, instrumentos da
mesma contingência, por isso a relação com eles é sempre ambivalente.
A criança, por sua
vez, “barganha” com a contingência por meio dessas figuras mediadoras
com o mundo à sua volta. Ao longo da infância, essa “barganha” será
razoavelmente bem-sucedida na maioria dos casos. Essa barganha por meio
dos pais humaniza a relação com a contingência de alguma forma.
A religião seria,
pois, um retorno a essa posição infantil de humanização da relação com a
contingência, bem-sucedida com os pais na infância.
Por meio dos deuses,
de Deus, dos orixás, da natureza, do sagrado feminino, do universo que
conspira a nosso favor ou de uma consciência cósmica, as pessoas
enfrentariam a contingência “acompanhadas”. Ou, melhor, que a
contingência não é propriamente cega, mas que existe um sentido maior e
organizado por trás da aparentemente precária situação em que nos
encontramos. E que esse sentido maior ou organização nos permite
repousar neles.
Percebemos, assim,
que uma das funções maiores da busca de negação do caráter cego da
contingência é encontrar repouso. Quando humanizamos a relação com a
contingência, ou humanizamos ela mesma imaginando um “todo divino” do
qual fazemos parte, repousamos. E, aí, venceríamos o desamparo.
Respostas como a de
Kekes parecem negar esse repouso porque afirmam que nada temos como
anteparo à contingência cega e ao desamparo, a não ser nossa capacidade
humana de lidar com a realidade, mesmo que de forma precária. Freud
concorda com Kekes: não há repouso. Freud e Kekes investem no
amadurecimento. Recurso escasso hoje em dia.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário