José Nêumanne
fornece mais um exemplo de que textos produzidos em universidades têm
muito de ideologia e pouco de conhecimento. No caso, trata-se de livro
de uma historiadora de Maringá (PR) que trata um velho editor de livros
como agente do "imperialismo ianque": o baiano Gumercindo Rocha Dórea,
que lançou no Brasil traduções de autores de ficção científica, como
Isaac Asimov, pela sua editora, GRD. Segue o texto:
Como qualquer gênero
literário, a ficção científica apresenta aos leitores obras de baixa
qualidade ou de esplêndida feitura. Por falta de espaço para elaborar
uma lista dos piores livros da modalidade, o autor pede vênia ao leitor
para ser dispensado de listá-los. É preferível, para quem escreve e para
quem lê, elencar textos que alcançaram o estágio do sublime e que
serviram de base para anarrativas de alta magnificência em outras artes.
É o caso de 2001 – Uma odisseia no espaço, do britânico Arthur
C. Clarke. Dele foi extraído o clássico de cinematografia com o mesmo
título, dirigido pelo americano Stanley Kubrick. É antológica a cena do
primata jogando um osso no espaço com o corte da edição permitindo que o
espectador o veja transformar-se numa nave sideral.
Um livro britânico e
um filme ianque. Será a ficção científica uma exclusividade dos
vencedores da Guerra de Secessão? Que dizer de Solaris? Nada
poderia ser tão pouco imperialista como uma obra dirigida pelo soviético
Andrei Tarkovski no tempo em que a União Soviética ainda existia. E
mais: a fita é baseada no romance do polonês Stanislaw Lem, no qual
também, diga-se de passagem, baseou-se o gringo Steven Sorderbergh,
sulista de Atlanta, para produzir sua própria versão em cinema – exemplo
do alcance planetário e extra-ideológico do gênero.
O autor destas linhas
é de uma geração de brasileiros privilegiados que conheceram a
modalidade multinacional sem ter de aprender russo para ler Cem anos à frente,
novela de Kir Bolitchov (1978), e assim conhecer a descrição avant la
lettre do corriqueiro celular de nossos dias. Ou fruir em inglês
corrente a magnífica prosa de Crônicas Marcianas, de Ray
Bradbury. O baiano Gumercindo Rocha Dórea criou uma editora, a GRD, que
lançou em português romances, novelas e contos que inspiraram a fundação
de clubes de ficção científica pelo País inteiro, permitindo a
patrícios monoglotas conhecerem o gênio de Isaac Asimov. Assim como
livros proibidos de dissidentes do regime stalinista, como o celebrado
Nós, de Ieuguêni Zemiatin. De lambujem, lançou prosadores na língua
pátria da estirpe de Fausto Cunha, autor de As Noites Marcianas, Gerardo Mello Mourão, Rubem Fonseca e Nelida Piñon, que dispensam apresentações.
Por causa disso e de
muito mais, Dórea sempre foi tratado como herói por cultores do gênero,
caso de Bráulio Tavares, meu conterrâneo e contemporâneo de adolescência
em Campina Grande, e Ataíde Tartari, paulistano. A historiadora Laura
de Oliveira, premiada por sua tese sobre Guerra Fria e Política Editorial,
detentora de láureas de saber acadêmico, com texto recentemente lançado
em livro pela Universidade Estadual de Maringá, contudo, resolveu
reescrever a história, ao feitio stalinista, que Zamiatin denunciou,
atribuindo à ficção científica a sórdida condição de mera propaganda
imperialista dos EUA e reservando a Dórea o papel de reles vassalo dos
interesses da dominação ianque sobre o Brasil na metade do século 20, a
soldo do ouro do Forte Knox. Tudo isso porque Dórea nunca escondeu sua
condição de integralista, corrente política de inspiração fascista que
teve importância na cena política dos anos 30 aos 60, abraçada por
políticos e intelectuais como Dom Helder Câmara, San Thiago Dantas e
Miguel Reale. Mas dela hoje só restam vagarosas lembranças, como o
equivocado ideário autoritário de Plínio Salgado, autor de uma brilhante
Vida de Cristo.
A capa do livro não
deixa dúvidas quanto a suas intenções e distorções: Tio Sam, de casaca e
calça listrada, senta-se no ombro do jovem editor, certamente soprando
palavras de ordem para emitir doses fatais de veneno colonialista com o
fito de escravizar nossa doce pátria espoliada. Se a capa é grotesca, o
texto da autora é pior. Isso deixa a impressão de que a acadêmica foi
movida pela intuição de que jamais a própria obra de vulgarização do
marxismo-leninismo teria sido publicada por Dórea. Seja por professar
ela ideologia antagônica à dele, seja por não ter o texto dela a
qualidade exigida por ele na seleção dos originais a serem postos à
venda.
Pela leitura do
tatibitate menos do que sofrível texto a que a autora expõe o leitor e
pelos deslizes editoriais que a tornam uma missão quase impossível, de
tão espinhosa (a revisão deixou passar linhas repetidas em algumas
páginas), a obra termina por fazer propaganda de Dórea, embora em nenhum
momento lhe faça justiça.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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