Texto de Paulo Tunhas
sobre a falta de contato de esquerdistas, em geral, com a realidade,
tanto faz o lugar do mundo em que se esteja:
Não sei se o mundo
anda particularmente mais perigoso por estes dias, mas sei que anda mais
próximo do sem-sentido do que estamos habituados a tolerar. Muitos anos
de ilusões e de desatenção à realidade pagam-se caro, e parece que é a
hora de os pagar todos ao mesmo tempo. Quem gosta de tempos
interessantes tem todas as razões para andar feliz. O comum das pessoas,
no entanto, não gosta. E, se me é permitida uma opinião, tem todas as
razões para não gostar.
Comecemos pelo mais
longínquo. O último avatar da dinastia dos Kim da Coreia do Norte ameaça
tudo e todos com armas nucleares. Como de costume, o grotesco daquele
regime impediu-nos, durante anos, de o levarmos verdadeiramente a sério.
O riso protege a psique de maus pensamentos. De repente, já não é mais
bem assim. E se a loucura der o passo que à loucura convém? Impossível? O
impossível já esteve muito mais distante.
E o destino das muito
celebradas “primaveras árabes”? Tirando um lugar ou outro, por
regressão a um estado anterior ao seu eclodir ou pela existência de um
poder relativamente forte que evitou o pior, o caos absoluto, de que a
Síria é o exemplo mais gritante, embora longe de ser o único. Vagas e
vagas de refugiados que morrem no Mediterrâneo e outros que conseguem
chegar à querida Europa. Quem se lembra da confiança sanguínea
depositada nas virtudes daquelas revoltas, das quais pouco se sabia e
nada se percebia? Certamente que não os seus mais vocais apologistas,
que agora, com a costumeira irresponsabilidade, se recusam a ver os
problemas bem reais que tais migrações nos podem criar, sobretudo a
médio prazo, com o acentuar das incompatibilidades culturais que
fatalmente se manifestarão um dia de forma violenta.
E a tão adorada
Venezuela “bolivariana”? Seria bom recordar os entusiasmos extremos e
líricos que ela provocou muito para lá dos seus inícios, quando já tudo
era previsível (já era, é claro, previsível nos seus inícios). Há gente
que, decididamente, se dá bem com a monstruosidade e lhe descobre
encantos tão sobrenaturais como o passarinho de Maduro. O que sobra
desse lindo empreendimento? Uma sociedade em pedaços, completamente
destruída, à beira de uma guerra civil ou já quase dentro dela.
Um salto, agora, para
o mais próximo. Durante muito tempo distraídos com Trump e o Brexit,
acordamos com Marine Le Pen à porta. Só quem não veja um palmo à frente
do nariz pode confundir os três fenómenos e não perceber a gravidade
suprema do último. Marine Le Pen é a herdeira de uma longa tradição
francesa com os piores pergaminhos imagináveis. À porta do poder, uma
parte substancial da esquerda francesa, aquela representada por Jean-Luc
Mélenchon (que defende, de resto, uma “Aliança Bolivariana” com Cuba e a
Venezuela), vê com maus olhos o voto em Macron, sórdido representante
dos interesses capitalistas. Como aqui ontem lembrou José Manuel Fernandes,
o nosso delegado caseiro dessa escola de pensamento, Francisco Louçã,
partilha a doutrina. A atitude é pura e simplesmente criminosa e
resultado de velhíssimas alucinações ideológicas. Criminosa, e não
apenas idiota, porque Le Pen pode mesmo chegar ao poder. E a chegada de
Le Pen ao poder representa o fim da Europa tal como a conhecemos. (A
responsabilidade da União Europeia na chegada a este estado de coisas é
algo de efectivo, e também ela feita de erros e ilusões sem conta, que
os seus mais dogmáticos apóstolos se recusam sistematicamente a
aceitar.)
E, a acabar, o nosso
pequeno quintal? Aparentemente anda pacato, com futebol e Ronaldo, muito
Ronaldo, e Marcelo, muitíssimo Marcelo (como não se cansa ele de
falar?). Ninguém se incomoda muito com a esquerda se considerar
proprietária do país e agir em conformidade com esse título de
proveniência duvidosa, procurando abafar tudo o que represente
independência e contra-poder. Os tradicionais defeitos aparentemente
tornaram-se virtudes, com José Miguel Júdice a elogiar Marcelo e Costa
pela sua habilidade em mentirem (ele acha graça). E tivemos mais uma
comemoração do 25 de Abril e vamos ter Fátima e feriados e “pontes”.
Quem julgar que isto vai por muito maus caminhos e que a retórica
ambiente tresanda a hipocrisia e irresponsabilidade é claramente
fascista.
Quando conviria
ajustar o nosso pensamento para responder às consequências da prática
continuada da ilusão e da desatenção à realidade, o que se vê? Um
carregar no pedal de mais ilusão e irrealidade. A facilidade de
acreditar perpetua-se até se tornar uma segunda natureza, imune a
qualquer desmentido. Os tempos andam, de facto, interessantes:
arriscam-se a ficar interessantíssimos. A questão está em saber qual é o
limite do sem-sentido tolerável neste mundo aos pedaços. (Observador).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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