Paulo Tunhas, articulista do Observador,
faz uma análise jocosa dos vazios conceitos de "esquerda" e "direita" e
atenta para um fato: graças aos esquerdistas, é muito fácil ser de
direita em Portugal - e no Brasil também, diria eu:
A
discussão sobre “esquerda” e “direita” é certamente daquelas que menos
interessa ao comum das pessoas, e eu serei certamente o último a
censurá-las por isso. Não é que não existam bons livros sobre a génese
histórica dos termos e das atitudes e até algumas boas análises dos
conceitos. Mas, regra geral, a discussão tende para o ocioso, quando não
para o irremediavelmente oco, com a agravante de a conversa se ver
muitas vezes infiltrada por considerações que relevam de puros gestos de
má-fé ou de afirmações sempre ligeiramente incómodas e excessivas de
identidade pessoal. Mais vale, e de longe, ocupar o tempo com o estudo
das querelas sobre a predestinação, a transubstanciação ou a eficácia da
graça. Somando tudo, voa-se um bocadinho mais alto e o espírito sai da
coisa mais satisfeito.
Dito
isto, há um plano mais modesto em que o exercício vale talvez a pena.
Ele não diz tanto respeito à essência dos conceitos quanto à sua comum
utilização no que se chama o espaço público. Há, por assim dizer, um
ambiente que favorece certas reacções e maneiras de ver as coisas e que
revela muito em que tipo de sociedade vivemos. Não estou a pensar no
discurso dos políticos, que têm, quase por necessidade de ofício, de
simplificar para agirem e para justificarem a sua existência,
invariavelmente ornamentada pelos mais elevados valores. Estou a pensar
em criaturas mais pacatas que sentem a urgência de usarem emblemas na
lapela nas suas conversas de sociedade.
Ora, no
que respeita a esta última categoria, uma já longa observação mostrou-me
para lá de qualquer dúvida que uma das coisas mais fáceis do mundo é
ser de direita em Portugal. Não o digo, apresso-me a dizer, como quem se
queixa. Pessoalmente, a atribuição do predicado não me incomoda nada,
antes pelo contrário. Limito-me a constatar que os critérios que o meio
ambiente põe à nossa disposição nestas matérias facilita, e de que
maneira, uma tal classificação. E que isso diz muito sobre a natureza da
sociedade que é a nossa.
Para
ilustrar isto, dou o exemplo de três atitudes muito gerais que
amplamente bastam para definir um indivíduo como sendo de direita. O
carácter muito geral dessas atitudes, até pela sua natureza vaga, é
propositado, porque revela o pouco que é necessário para que a
identificação seja posta em marcha.
Imagine
que, quaisquer que sejam as suas convicções em relação aos vários casos
particulares, adopta a atitude geral de discordar do excesso de
policiamento da linguagem vigente na sociedade contemporânea. Mais
precisamente: duvida dos méritos de uma sociedade em que um vasto
conjunto de expressões se vêm apresentadas como sinal de intrínseca
malevolência para com grupos de dimensão variável dos seus concidadãos.
Não é necessário que as aprecie, e menos ainda que as use ou as queira
usar. Basta desconfiar da colagem imediata da linguagem a uma intenção
suposta e guardar algum cepticismo no que respeita à atribuição
instantânea de uma visão do mundo repugnante a quem usa tal linguagem.
Para dar um exemplo recente, acusar um indivíduo de sexismo, xenofobia e
racismo por ter dito algo que apenas num universo de vigilância
paranóica da linguagem pode ser apresentado como instanciando tais
desagradáveis predicados. Se partilha tais reservas, o amigo ou a amiga é
claramente de direita.
Um outro
exemplo. Mesmo que tenha a salutar prudência de não se julgar na posse
de uma teoria perfeita da sociedade, e mesmo que creia que as sociedades
humanas são demasiado complexas para serem objecto de uma teoria muito
limpinha e geométrica, o amigo ou a amiga extraiu da sua cabecinha, por
via de alguma observação empírica, a ideia de que um peso excessivo do
Estado na sociedade se revela danoso para esta. Além disso, tem na
memória, pela leitura de livros que relatam alguns episódios célebres em
detalhe, vários factos que abundantemente concordam com a sua limitada
observação empírica. Não precisa, note, de acreditar de alma e coração
nos méritos indisputáveis de uma sociedade em que o Estado se abstenha
de qualquer influência na formação e na protecção dos cidadãos. Pode até
(e deve, se uma opinião me é permitida) achar tal doutrina absurda.
Basta que conceba a necessidade de estabelecer limites à acção do Estado
(na economia, entre outras coisas) quando tais limites são necessários à
preservação da liberdade individual e a um funcionamento relativamente
saudável da economia. E que receie as piores consequências quando tais
limites não são respeitados. Se pensa assim, se sente assim, a amiga ou o
amigo é evidentemente de direita.
Imagine,
por último, nesta breve lista, que não simpatiza com regimes políticos
ditatoriais ou totalitários. Tal antipatia impede-o de, em nome de
qualquer concepção da história, encontrar graças salvadoras num ou
noutro e de conceber justificações teóricas ou práticas para o exercício
da violência praticada por esses regimes sobre os seus cidadãos. Por
maioria de razão, repugnam-lhe gestos de ternura e admiração por
ditadores seleccionados. E não vai na cantiga do sonho e da utopia que,
quaisquer que sejam as consequências, manifestam um potencial libertador
que indica o futuro da espécie humana. Claramente, a amiga ou o amigo é
de direita.
Dir-se-á
que há gente de esquerda que pensa exactamente assim e que nenhuma
fatal lei lógica obriga a que estes sentimentos sejam propriedade
exclusiva da direita. Haverá, certamente. Houve no passado e não há
razão alguma para que essa gente tenha abandonado o nosso planeta.
Acontece, no entanto, que o ambiente presente a torna tendencialmente
inaudível, ao ponto de, pelo que se pode ver e ler, todas estas
persuasões se encontrarem praticamente, por estas bandas, restritas à
direita. Não custa assim perceber que seja fácil ser de direita em
Portugal. De direita? Mais: de direita radical.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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