A
saga do cacau no sul da Bahia faz parte da história econômica e
cultural do Brasil. Não fosse a bem-sucedida introdução dos cacaueiros
na região de Ilhéus no século 18, não haveria o ciclo do cacau da Bahia
nem motivos para inspirar Jorge Amado a escrever Gabriela, Cravo e
Canela. Mas o sucesso da cultura do cacau na Bahia é coisa do passado. O
Brasil, que já foi o segundo maior produtor mundial de cacau, hoje é
apenas o sexto. E foi somente em 2015, após mais de 20 anos excluída do
mercado mundial, que a Bahia pôde retomar a exportação do produto. A
culpa do declínio da cacauicultura baiana é o fungo Moniliophtora
perniciosa, que transmite a doença da vassoura-de-bruxa. A praga
apareceu na região de Ilhéus-Itabuna em 1989 e se alastrou afetando os
frutos, os brotos e as flores dos cacaueiros. As árvores deixaram de dar
frutos. A produção brasileira, que era de 320 mil toneladas por ano,
despencou para 190 mil toneladas por ano em 1991. Toda a queda
corresponde ao tombo da cacauicultura baiana, estado que concentrava 80%
da produção. Nas últimas duas décadas, muitos esforços têm sido feitos
para o combate à vassoura-de-bruxa, especialmente na busca de novas
variedades de cacau resistentes à praga, pois o fungo continua presente
no sul da Bahia. Uma iniciativa inovadora é o estudo de estrutura
genética e da diversidade molecular do assim chamado “cacau da Bahia”,
um conjunto de variedades locais desenvolvidas nos últimos dois séculos.
O
estudo é conduzido pela professora Anete Pereira de Souza, do Instituto
de Biologia e do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética da
Universidade Estadual de Campinas, ao lado de pesquisadores de diversas
universidades e centros de pesquisa da Bahia, como a Comissão Executiva
do Plano da Lavoura Cacaueira (Ceplac), a Universidade Estadual do
Sudoeste da Bahia (Uesb), a Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc) e
o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Baiano (IF
Baiano). Os resultados foram publicados na PLoS One, com apoio da
FAPESP. “A baixa resistência do cacau da Bahia à praga da
vassoura-de-bruxa sempre me intrigou”, disse Souza. “A Amazônia
brasileira é um dos centros da espécie Theobroma cacao. Portanto, devem
existir muitas variedades e tipos de cacau diferentes, alguns inclusive
resistentes ao fungo M. perniciosa. Então, como se explica que a praga
praticamente dizimou as plantações de cacau do sul da Bahia em poucos
anos, sendo que ele veio da Amazônia? Decidimos então estudar a história
genética do cacau da Bahia para encontrar a razão de sua baixa
resistência à vassoura-de-bruxa e assim encontrar uma maneira de
torná-lo mais resistente ao fungo.” O cacau chegou à Bahia em 1746,
quando um colonizador francês que vivia no Pará, Luiz Frederico Warneau,
enviou algumas sementes da variedade “Forastero” (do grupo Amelonado)
ao fazendeiro baiano Antonio Dias Ribeiro, que as semeou no município de
Canavieiras. Em 1752, foram plantadas as primeiras sementes em Ilhéus.
As plantas se aclimataram bem à região. Ao longo do século 19, as
fazendas de cacau foram se disseminando na região e as exportações
avançaram à medida que aumentava o consumo de chocolate na Europa e nos
Estados Unidos. Nas primeiras décadas do século 20, o cacau era o
principal produto de exportação da Bahia. “O cacau da Bahia é de
excelente qualidade, tanto que todos os cinco maiores produtores
mundiais (Costa do Marfim, Gana, Indonésia, Nigéria e Camarões, nesta
ordem) plantam o cacau da Bahia. As sementes que lá foram introduzidas
pertenciam todas à variedade Forastero da Bahia”, explicou Souza. A
vassoura-de-bruxa é endêmica na América do Sul e no Caribe, mas jamais
atravessou o oceano para infestar os plantios na África e no sudeste
asiático. Após grande combate epidemiológico e científico à
vassoura-de-bruxa, resultados começaram a aparecer. A produção
brasileira de cacau, que havia recuado a um mínimo de 170 mil toneladas
em 2003, atingiu 291 mil toneladas em 2014, a maior safra em 26 anos. O
maior controle da vassoura-de-bruxa possibilitou à Bahia voltar ao
mercado externo, com a exportação de 6,6 mil toneladas de amêndoas para o
mercado europeu em 2015. Para entender a razão genética da extrema
suscetibilidade do cacau da Bahia à vassoura-de-bruxa, Souza e a então
doutoranda Elisa Santos, da Universidade Estadual do Sudeste da Bahia,
juntamente com pesquisadores da Universidade Estadual de Santa Cruz e da
Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira, ambas em Ilhéus (BA),
foram a campo. Santos coletou 219 amostras de folhas de cacaueiros em
sete fazendas, assim como outras 51 amostras de híbridos desenvolvidos
ao longo de décadas no Centro de Pesquisas do Cacau (Cepec/Ceplac), de
Ilhéus. De volta ao Centro de Biologia Molecular da Unicamp, foi
realizado o sequenciamento do DNA nuclear das 270 amostras, focalizando a
investigação em 30 marcadores moleculares – pequenos trechos do DNA que
servem de parâmetro de comparação entre as variedades. O que se
descobriu foi que a base genética do cacau da Bahia é muito estreita.
Literalmente todos os cacaueiros baianos têm a sua origem em um número
muito pequeno de indivíduos, ou seja, de sementes da variedade
Forastero. É que essas sementes foram muito bem escolhidas pela
qualidade do cacau produzido pelas árvores que deram origem a elas.
Entre aquelas estão as sementes trazidas por Warneau há 270 anos. Se por
um lado a baixa diversidade genética das plantas garantia a qualidade
do fruto, por outro tornava toda a população de cacaueiros frágil, dada a
ausência de variedades que pudessem resistir a uma ameaça como acabou
sendo a vassoura-de-bruxa. Para piorar a situação, os pesquisadores
descobriram que os híbridos desenvolvidos pelo centro de melhoramento
nos anos 1950 e 1960 (e cultivados até hoje), em vez de aumentarem a
variação genética na população cacaueira, acabaram por reduzi-la ainda
mais, já que também foram produzidos com base apenas na qualidade do
cacau. “Já havia uma base genética estreita. Então se escolheu
unicamente plantas dessa base para obter híbridos. Não se pensou em
trazer novas variedades de fora da Bahia para ampliar a base genética
das árvores da região. O resultado foi a obtenção de híbridos ainda
menos resistentes à vassoura-de-bruxa”, disse Souza. Uma boa notícia da
pesquisa foi a descoberta nas fazendas de árvores resistentes à doença e
com maior variação genética que aquela encontrada nos híbridos
atualmente existentes. “São cacaueiros anteriores à praga, que jamais
foram atacados, não foram derrubados e continuam produzindo. E devem
existir outros, além dos que coletamos. Essas árvores não podem ser
perdidas. Governo e fazendeiros precisam preservar essas variedades,
elas representam o sucesso no futuro da cacauicultura baiana, nacional e
também mundial, já que o cacau da Bahia foi exportado para o mundo
todo”, disse Souza. Atualmente novos híbridos envolvendo as árvores de
cacau com resistência à vassoura-de-bruxa e maior variação genética já
estão sendo obtidos pelos pesquisadores dos centros de pesquisa na
Bahia. Essa matéria foi originalmente publicada no site da Agência
Fapesp.
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