O professor e ensaísta
português João Carlos Espada analisa o encontro entre o presidente
norte-americano Donald Trump e a primeira-ministra britânica Theresa
May, que fizeram referência a Winston Churchill. Com isso, "tiveram
o mérito de fornecer ao público o padrão pelo qual irão ser avaliados. E
essa avaliação vai incidir sobre os seus actos, não apenas sobre as
suas palavras":
É ainda cedo para
avaliar o real significado da cimeira da passada sexta-feira entre o
Presidente norte-americano Donald Trump e a primeira-ministra britânica
Theresa May. Um dos aspectos muito positivos foi sem dúvida a
reafirmação do empenhamento de ambos para com a NATO — um tema que, no
mínimo, tinha ficado ambíguo na campanha eleitoral de Donald Trump, mas
que nunca foi ambíguo no Parlamento britânico (apesar da hostilidade do
actual líder do partido trabalhista, Jeremy Corbyn).
Outro aspecto a
realçar foram as referências a Winston Churchill e à “relação especial”
anglo-americana. É certo que os políticos gostam de usar “slogans” que
possam agradar aos seus eleitorados. Mas há certos “slogans” que têm
consequências e fornecem rumos à navegação — dos quais o afastamento
ulterior acarreta custos elevados.
Esse é certamente o
caso das referências a Churchill e à sua muito estimada “relação
especial” anglo-americana. Mais do que um rumo, estas referências
fornecem uma âncora. Têm uma história, constituem uma tradição e, até
certo ponto, fornecem um programa. Não se pode jogar com elas ao sabor
do capricho dos políticos.
Winston Churchill
celebrizou, mas não inventou, a expressão “relação especial”
anglo-americana. Definiu-a no interior de uma relação mais vasta, a dos
povos de língua inglesa. E integrou-a na ainda mais vasta tradição
europeia e ocidental da liberdade sob a lei.
Uma História dos
Povos de Língua Inglesa foi o último dos mais de 40 livros publicados
por Churchill — o primeiro volume (de quatro) saiu em 1956. Mas foi
também o livro a que Churchill dedicou mais tempo, mais de vinte anos na
verdade. As primeiras páginas foram escritas em 1932, durante a década
de solitária resistência de Churchill à política de apaziguamento do
nazismo por parte dos governos do seu próprio partido conservador.
Numa carta a um dos
seus assistentes, em 1939, Churchill deu conta daquilo que lhe parecia
constituir o argumento central do livro em maturação:
"No
fundamental, o tema que está a emergir é o do crescimento da liberdade e
da lei, dos direitos do indivíduo, da subordinação do Estado às
concepções morais fundamentais de uma comunidade em expansão… Destas
ideias, os povos de língua inglesa foram autores, depois fieis
depositários, e devem agora tornar-se os campeões armados. Por isso, eu
condeno a tirania, qualquer que seja a forma em que se apresente e
qualquer que seja o quadrante de onde venha. Tudo isto tem obviamente
aplicação nos tempos que correm.”
Nesse mesmo ano de
1939, numa mensagem radiofónica difundida na América a 8 de Agosto,
Churchill (ainda apenas deputado conservador, sem responsabilidades no
governo) procurou precisar o conteúdo da cultura política dos povos de
língua inglesa:
"É
curioso como os povos de língua inglesa sempre tiveram horror ao poder
de um só homem. Eles estão dispostos a seguir um líder durante algum
tempo, enquanto acharem que eles lhes é útil; mas a ideia de se
entregarem completamente, de corpo e alma, a um só homem, e de o
adorarem como se fosse um ídolo — isso tem sempre sido odioso para o
tema e a natureza da nossa civilização… Freios e contra-pesos no corpo
político, vasta devolução dos poderes do Estado, instrumentos e
processos de debate livre, recurso frequente a princípios primeiros, o
direito de oposição aos governos mais poderosos, e acima de tudo
vigilância permanente, tudo isto tem preservado e continuará a preservar
as características gerais das instituições britânicas e americanas.”
Churchill forneceu
precisões adicionais a esta disposição dos povos de língua inglesa.
Quando definiu as convicções políticas de Sir Francis Mowatt, um alto
funcionário público que tinha servido Gladstone e Disraeli, os dois
estadistas rivais (um liberal, o outro conservador) da Inglaterra
vitoriana, disse Churchill:
"Ele
representava a completa visão vitoriana triunfante da economia e das
finanças: estrita parcimónia, contabilidade exacta; comércio livre,
independentemente do que o resto do mundo pudesse fazer; governo suave e
firme; evitar as guerras; apenas pagamento das dívidas, redução dos
impostos e reforço da poupança; quanto ao resto — ao comércio,
indústria, agricultura, vida social — ‘laissez-faire e laissez-aller’
[sic]. Deixemos que o Governo se reduza e reduza as suas exigências
sobre o público ao mínimo; deixemos que a nação viva de si própria,
deixemos que a organização social e industrial tome o curso que quiser,
sujeita às leis da nação e aos Dez Mandamentos. Deixemos que o dinheiro
frutifique nos bolsos das pessoas.”
Muito mais podia ser
recordado, mas não é necessário. Estas passagens deixam claro o sentido
da “relação especial” anglo-americana. Na década de 1980, Ronald Reagan e
Margaret Thatcher retomaram estas ideias para dar novo vigor à aliança
das democracia euro-atlânticas. Ao citarem Churchill e a “relação
especial” anglo-americana, Theresa May e Donald Trump tiveram o mérito
de fornecer ao público o padrão pelo qual irão ser avaliados. E essa
avaliação vai incidir sobre os seus actos, não apenas sobre as suas
palavras. (Observador).
BLOG ORLANDO TAMBOSI
Nenhum comentário:
Postar um comentário