Em artigo publicado no jornal Observador, o professor João Carlos Espada (autor de A tradição anglo-americana da liberdade,
entre outros) critica severamente o multiculturalismo que prolifera na
Europa. Essa doutrina politicamente correta não defende a liberdade e a
sociedade aberta. O
multiculturalismo é, na verdade, "defensor da tribalização das
sociedades em grupos colectivistas nos quais as pessoas são definidas
pela pertença de origem". Está longe de ser, portanto, uma livre
concorrência entre múltiplas tradições culturais e religiosas. Segue o
texto na íntegra:
Os
atentados terroristas da semana passada em Bruxelas chocaram o mundo
civilizado. Contrariamente ao que pretendem os terroristas, também
reforçaram a determinação de lhes fazer frente. Esta determinação deve
ser subscrita por todos os defensores do mundo livre. E deve agora ser
acompanhada das medidas necessárias para derrotar o terrorismo. É uma
batalha longa e difícil. Mas é uma batalha que pode seguramente ser
ganha pelas nossas democracias.
Um
primeiro passo consiste em reforçar as forças de segurança e a
articulação entre elas. Vários especialistas nesta área sublinharam a
importância de reforçar os serviços de informação. Destacaram a urgência
de infiltrar as redes terroristas e as comunidades em que se
movimentam. E sublinharam a necessidade de reforçar a partilha de
informação entre os serviços de informação euro-atlânticos. Tudo isto
pode ser feito rapidamente, desde que exista vontade política e
determinação.
Mas as
forças de segurança e informação não podem agir sozinhas. É
indispensável que as redes terroristas não possam movimentar-se em
“zonas de excepção” no interior dos nossos estados de direito. Aqui
enfrentamos um problema mais fundo, a chamada ortodoxia politicamente
correcta, também conhecida por “multiculturalismo”.
A
expressão é, aliás, enganadora. À primeira vista, multiculturalismo
deveria querer dizer livre concorrência entre múltiplas tradições
culturais e religiosas. Este é um princípio da sociedade aberta, fundada
na igual liberdade das pessoas perante a lei. O seu alicerce
fundamental reside na liberdade de expressão, o que inclui obviamente a
liberdade de crítica mútua e pacífica entre as várias tradições
culturais e religiosas.
Mas o
“multiculturalismo” realmente existente não é defensor da liberdade e da
sociedade aberta. É defensor da tribalização das sociedades em grupos
colectivistas nos quais as pessoas são definidas pela pertença de
origem. Em torno desses grupos colectivistas, o “multiculturalismo”
ergue muros para impedir o diálogo e a crítica, alegando que está a
fornecer-lhes igual protecção e igual direito a “identidades
diferentes”. Na verdade, está a impedir a conversação entre pontos de
vista diferentes e, nos casos limite, está a criar “guetos” onde o
primado da lei não pode entrar.
Acresce
que a protecção das diferentes identidades não é igual para todas. Há
umas identidades que são mais iguais do que outras. O
“multiculturalismo” é uma nova versão das velhas doutrinas
anti-ocidentais que descrevem o Ocidente como sede de opressão,
imperialismo e expansionismo cristão. Na prática, o “multiculturalismo”
quer silenciar as vozes ocidentais e quer promover as chamadas
identidades não ocidentais. O resultado são “guetos” anti-ocidentais no
interior dos quais germina sem entrave o ódio contra as sociedades
abertas que os acolhem. É aí que crescem as redes terroristas.
Muitas
vozes genuinamente se interrogam hoje sobre a possibilidade de as nossas
democracias fazerem frente a este vírus terrorista ilibado pelo
“multiculturalismo”. Creio francamente que há aí um mal entendido. As
democracias têm os melhores instrumentos para esse combate. Basta que
sejam autorizadas a utilizá-los.
Esses
instrumentos chamam-se primado da lei, liberdade, concorrência,
sociedade civil. Reforcemos, por um lado, os serviços de segurança e
informação sob a alçada da lei. Deixemos, por outro lado, as pessoas
livre e pacificamente exprimirem as suas opiniões. Deixemos falar as
instituições intermédias, ou os “pequenos pelotões” de que falava Edmund
Burke — as famílias, as vizinhanças, as igrejas, os clubes e
associações voluntárias de todos os tipos, nomeadamente as escolas.
Para
retomar uma grande frase, “libertemos a sociedade civil” — no caso
presente, libertemos através do primado da lei a sociedade civil do
espartilho politicamente correcto do “multiculturalismo” e da ortodoxia
anti-ocidental.
***
P.S.: vale lembrar que A sociedade aberta e seus inimigos é, também, o título de uma obra clássica do filósofo Karl Popper.
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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