A ironia do tempo: no domingo, a direita brasileira cantou a plenos pulmões o verso do Chico: "Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal. Ainda vai tornar-se um imenso Portugal”.
Afinal, a vitória das direitas - a mais racional, tradicional, sob o
nome de Aliança Democrática, e a mais bizarra, chamada - seguindo a
cartilha da novilíngua de Orwell - de “Chega”, desbancaram o Partido
Socialista, há oito anos no poder, nas eleições antecipadas depois da
demissão do Primeiro-Ministro, enrolado em meio a acusações de
corrupção. Aliás, outra ironia - já que as esquerdas sempre pregaram a
lisura na gestão pública - outra canção do Chico: “Dormia, a nossa pátria-mãe tão distraída, sem perceber que era subtraída, em tenebrosas transações.”
O resultado, comemorado por bolsonaros, maltas, malafaias et caterva,
não é propriamente uma vitória acachapante, mas uma vitória suficiente,
já que garante uma desestabilização inegável do bipartidarismo
português, vigente, em meio a arranjos (muitas vezes à socapa) desde a
revolução dos Cravos, o movimento dos capitães que acabou com a ditadura
que relegou Portugal à condição de um pária europeu, um país
melancólico, de favas e fados e vilas de senhoras de luto permanente com
rosários nas mãos e imagens de António de Oliveira na parede caiada e
sem viço.
Agora, sobre o
futuro, nem a Deus pertence, mas aos arranjos que envolverão, à direita -
PPD, PSD, CDS, PP, PPM - com a Iniciativa Liberal, e /ou com o Chega,
que alcançou a posição de terceira força política do país, ganhando a
projeção que o Vox tem na Espanha, ou o Partido pela Liberdade na
Holanda, ou mesmo o Alternativa para a Alemanha. Luís Montenegro, líder
da coligação vencedora, a AD, prometeu que não colocaria o Chega no
governo. Mas a realidade pode mudar suas convicções. Sem a extrema
direita, a Aliança Democrática governará como minoria, como Lula faz por
aqui, no Brasil, tendo que matar um leão por dia, e, mesmo assim, sem
conseguir escapar de extensas e dolorosas mordidas. No caso de Portugal,
isso significa a possibilidade de novas eleições, o que pode gerar um
impasse como o que a Bélgica e Israel viveram. É o preço de um sistema
de governo pensado para ser bipartidário e não a colcha de retalhos no
qual a política portuguesa se transformou.
Por outro lado, o Partido Socialista - replicando outro verso do genial Chico Buarque: "Eu semeio o vento, na minha cidade, vou pra rua e bebo a tempestade”
- recebeu uma reprimenda dos eleitores, e perdeu mais de meio milhão de
votos - 10% do total de eleitores que foram às urnas. O tempo no poder -
quase 9 anos - sempre cobra um preço, mas a renúncia do primeiro
ministro em meio a acusações de corrupção enquanto os salários médios
dos portugueses são um dos menores da União Europeia, somado a uma
brutal gentrificação de suas principais cidades, tem provocado um efeito
“manifestações de 2013”, sem os black blocs,
mas com a mesma indignação. Os brazucas que o digam, vítimas que têm
sido em diversos episódios de ódio incontido e de desprezo declarado.
Todo esse caldo é um prato cheio para o novo fascismo que põe em risco a
Democracia no século XXI. Resta torcer que os versos do Chico não se
tornem realidade e não tenhamos de ver e viver "outra realidade menos morta, tanta mentira, tanta força bruta” outra vez.
* Daniel Medeiros é doutor em Educação Histórica e professor no Curso Positivo.
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