As razões não são nem um pouco misteriosas: dinheiro e poder. Bruna Frascolla para a Gazeta do Povo:
Não
há oposição fundamental entre ser evangélico e aderir ao petismo. O
próprio Malafaia, que hoje deve ser o maior expoente do antipetismo
evangélico, defendeu Lula em 2002 contra
a "campanha do medo" do seu adversário. É claro que muita água correu
de lá para cá, e espero ter dado um bom rascunho dessas mudanças
culturais nas relações entre o petismo e grupos religiosos em meu artigo
"Pró-vida versus pró-escolha: o que mudou no debate sobre aborto no Brasil em duas décadas".
Mas este mês tanto o veículo de esquerda Intercept Brasil quanto esta Gazeta
mostraram um contraexemplo tão fresco quanto premente: a aproximação
entre a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) e Nicolás Maduro.
As
razões não são nem um pouco misteriosas: dinheiro e poder. Maduro ano
passado criou um programa chamado “Minha Igreja Bem Equipada” que paga
10 dólares para pastores e subsidia a compra de móveis para igrejas. Mas
a crermos no Intercept, que ouviu ex-pastores da Universal, a menina
dos olhos de Edir Macedo seria a concessão de TVs na Venezuela. Maduro
ganharia com o crescimento da Universal porque a Conferência Episcopal
da Igreja Católica e as igrejas Batistas são contra o regime; assim,
sendo a Venezuela um país de maioria cristã, viria bem a calhar uma
igreja cristã favorável ao regime. Ronaldo Didini, ex-pastor da
Universal ouvido pelo Intercept, ajudou Edir Macedo a transmitir seus
programas da Record em Angola e Moçambique, e crê que ele continue com a
mesma estratégia de expandir-se por meio de concessões de TV.
Pois
bem: dia desses eu lia A persistência da raça (Civilização Brasileira,
2005), do antropólogo Peter Fry, nascido no Império Britânico, que fez
trabalho etnográfico na antiga Rodésia (atual Zimbábue) antes de se
estabelecer no Brasil e naturalizar-se brasileiro. Sua vida inclui
também um conhecimento de Moçambique, sobretudo do período da abertura
democrática, quando Peter foi para lá a serviço da Fundação Ford. E
testemunhou, nesse processo, a expansão das igrejas evangélicas no país.
Moçambique, um projeto português
Serei
o mais sumária possível na história de Moçambique. Na África Austral, o
Império Português e o Império Britânico eram vizinhos. Portugal sonhava
unir Angola a Moçambique; Cecil Rhodes (uma espécie de Elon Musk da
época) conseguiu botar uma Rodésia no meio do caminho. Portugal e
Inglaterra tinham, também, concepções muito diferentes de como lidar com
os negros: a nação católica sempre projetou a assimilação e a
integração; a protestante sempre projetou o apartheid. Quanto à
assimilação, a Inglaterra já teve uma fase de plantar na África, em
Serra Leoa, uma comunidade de negros libertos que imitava os ingleses em
tudo, mas sem miscigenar. Depois, porém, passou a defender, igual aos
bôeres, que civilizações ou raças diferentes têm desenvolvimentos
diferentes, que devem acontecer de maneira separada, sem bagunçar com
misturas. Algo que lembra o “separados, mas iguais”, da Era Jim Crow dos
EUA.
Notem
que nem o Brasil, nem Portugal, criaram países para mandar os negros
“de volta” para a África em meio às campanhas abolicionistas. Já a
Inglaterra e os Estados Unidos criaram Serra Leoa e a Libéria,
respectivamente. Mais tarde, os sionistas (que eram judeus ateus) conseguiriam patrocínio inglês para mandar os judeus “de volta” para o Oriente Médio.
O
jovem Peter, quando transitava entre a Rodésia inglesa e o Moçambique
português, teve oportunidade de observar a maior discrepância entre os
dois projetos coloniais: na Rodésia, brancos e negros não dividiam os
mesmos espaços e não trocavam palavra entre si; em Moçambique, os
brancos, negros e mulatos não só frequentavam os mesmos espaços, como
ainda conversavam na mesma língua! A partir desse choque, o jovem
antropólogo começa a se interessar pelas diferenças entre o projeto
inglês e o português, e por isso acaba vindo parar no Brasil. Começou
refratário. Chegou a fazer, de improviso, um artigo errôneo, segundo o
qual a feijoada é um símbolo negro do qual as elites brasileiras se
apropriaram: o movimento negro adorou, Peter se corrigiu (o mea culpa
está nesse mesmo livro que citei), mas os militantes não deram bola. Com
o tempo, porém, Peter mudou de ideia: acabou concluindo que a sanha
anti-Freyre nada mais era que o repeteco dos argumentos chauvinistas de
Perry Anderson contra o modelo português (em Portugal e o fim do
ultracolonialismo), considerado inferior ao colonialismo inglês. A
contragosto, Peter foi acusado de ser um nacionalista brasileiro e
aceitou a sina de defender a democracia racial de Gilberto Freyre.
Moçambique, um projeto britânico
Moçambique
ficou independente de Portugal e tornou-se, primeiro, socialista, sob o
governo de Samora Machel. Não obstante, o fim do domínio de Salazar
abriu os caminhos para que a Inglaterra crescesse os olhos para o seu
vizinho africano rico em minérios. Cito Peter: “Depois da independência
de Moçambique (1975) e de Zimbábue (1980), foi formada uma estreita
aliança entre os governos de Margaret Thatcher e Samora Machel, ícones
da economia de mercado e do socialismo, respectivamente. Aparentemente,
os dois líderes admiravam-se mutuamente. O governo britânico foi
responsável pelo treinamento da Frente de Libertação Nacional (Frelimo)
no combate contra a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), lutando,
em teoria, a favor da democracia e do livre mercado” (p. 46). A Renamo, a
seu turno, recebia financiamento dos brancos da Rodésia e da África do
Sul, bem como de “algumas igrejas fundamentalistas norte-americanas
interessadas em apoiar a ‘democracia’ contra o ‘comunismo’ ” (p. 71).
A
guerra civil entre Frelimo (o grupo guerrilheiro comunista que decretou
a independência) e Renamo durou desde 1977 até 1992. Em 1990, após a
queda do Muro de Berlim, Moçambique adota uma nova Constituição liberal;
no final de 1995, Moçambique passa a integrar oficialmente a
Commonwealth, até então o único país que nunca havia sido colônia
britânica a ingressar.
Em
meio a essas mudanças, lá vai Peter Fry a serviço da Fundação Ford
acompanhar os inúmeros “projetos” para o país, tocados pela USAID, ONGs
etc.
O fim do universalismo
O
Frelimo contrariou expectativas e conseguiu se firmar no poder. No
entanto, o partido mudou completamente. Cito Peter: “a guerra civil em
Moçambique, como um acontecimento crítico, anunciou não apenas o fim do
socialismo e sua substituição pela ‘democracia’ e a ‘economia de
mercado’; ela resultou também no surgimento de sérias dúvidas sobre o
valor dos velhos universalismos da ‘assimilação’ e do
‘marxismo-leninismo’ e na introdução dos imperativos discursivos da
‘diversidade’ e do ‘multiculturalismo’.
“Não
é uma coincidência que esta mudança de direção tenha ocorrido ao mesmo
tempo em que a dependência de Moçambique se transferiu do bloco
soviético para a Europa Ocidental e os Estados Unidos. A ‘comunidade’ de
desenvolvimento internacional, desiludida com as antigas estratégias de
modernização universalistas, orienta-se para o ‘desenvolvimento
comunitário’, o ‘desenvolvimento sustentável’, a ‘participação’, o
‘empoderamento’, o ‘multiculturalismo’, a ‘diversidade’ e o ‘respeito à
tradição local’, valores que têm emergido a partir dos conflitos raciais
e étnicos em seus países de origem” (p. 78).
Expliquemo-nos:
no período português, Moçambique era guiado pelo universalismo da
Igreja Católica; mas, não conseguindo aculturar os africanos de uma vez,
mantinha um indigenato no qual os usos e costumes eram respeitados
provisoriamente. Depois, os comunistas, que eram cientificistas e ateus,
tacharam de “obscurantistas” todo o mundo que não era ateu (ou seja,
todo o mundo que não eles mesmos), perseguindo inclusive as tribos que
viviam segundo usos e costumes tradicionais. Fazer do africano um
católico ou transformá-lo no Novo Homem Socialista eram dois projetos
que não conheciam barreira de raça; eram, portanto, projetos
universalistas. Os comunistas, então, perseguiram ferrenhamente aqueles
que os brasileiros chamariam de macumbeiros – coisa que a Igreja
Católica não havia feito.
Mas
aí entrou em cena o multiculturalismo plantado pelo establishment do
Atlântico Norte. Com a "diversidade" de "saberes e conheceres", os
comunistas moçambicanos de Thatcher se viram obrigados a mudar
completamente o seu discurso para manter o poder.
Voltemos
a Peter: “Estas ideias, evidentemente, concordam com a crença, cada vez
mais difundida pelo neoliberalismo, de que as estruturas do Estado
devem ser reduzidas para permitir a descentralização e o aumento da
autonomia das ‘comunidades locais’. O novo foco na descentralização e na
‘tradição’, portanto, não é difícil de ser financiado” (p. 78). E aí
Moçambique se encheu de antropólogos ongueiros que codificavam (nem
sempre de maneira correta) as “tradições” e transformavam-na em normas.
As lideranças tradicionais (chefes de tribos, curandeiros etc.) eram
cooptadas com rios de dinheiro vindo de fora; e, em vez de dar medicina
ocidental aos moçambicanos, os curandeiros é quem ganhavam o dinheiro –
ainda que o curandeirismo tenha existido desde sempre, sem precisar de
grandes somas.
Resultado de décadas de “desenvolvimento sustentável”
Depois de anos sendo tocado por essa moderníssima agenda, Moçambique não se tornou exatamente um lugar próspero e desenvolvido.
A
trajetória de Peter Fry, que se tornou um dissidente dentro da Fundação
Ford, sem nunca manifestar a crença em suas más intenções ou nas más
intenções das potências ocidentais, torna ainda mais interessante o fato
de que as coisas descritas por ele se encaixam na tese de Lorenzo
Carrasco segundo a qual as oligarquias do primeiro mundo querem
estabelecer um apartheid tecnológico, replicando mundo afora o
colonialismo praticado na África. Além do livro Máfia Verde (ed. Capax
Dei), recomendo os seus textos publicados nesta Gazeta, em especial
este.
Mas
voltemos à vaca fria, que são as igrejas caça-níquel. Tal como no
Brasil, tais igrejas dispararam em Moçambique sob os auspícios do
neoliberalismo; e, tal como no Brasil, elas o fizeram opondo-se à
“macumba”, o que as colocou em choque com o neoesquerdismo
multiculturalista patrocinado pelas elites.
O
catolicismo é cético quanto à feitiçaria; por isso, ao contrário dos
protestantes, não se deu ao trabalho de persegui-lo nos países que
formou. As mandingas pagãs são vistas como coisa do populacho, não como
coisa do demônio. Na Europa, o paganismo já havia perdido muita força
quando apareceu o protestantismo. No Brasil e em Moçambique, porém, as
novas denominações protestantes assumiram a forma da macumba, de modo
que surgiu uma verdadeira “magia branca” cristã, que fica combatendo as
mandingas tradicionais como "magia negra".
Para
que um católico e um protestante histórico vão à igreja? Certamente não
para pedir ao padre ou ao pastor que tragam de volta a pessoa amada,
nem que curem doenças, nem que tragam dinheiro (mesmo que os puritanos
apreciassem o dinheiro, eles não esperavam obtê-lo por milagres). Essas
são as razões que sempre levaram os supersticiosos às cartomantes,
feiticeiras e pais-de-santo; no entanto, são as razões que levam muitos
brasileiros e moçambicanos ao pastor.
Em
Moçambique, Peter Fry assistiu a uma cerimônia da Igreja Cristã
Apostólica de Zion em que um pastor lia o Velho Testamento para
sacrificar um bode a fim de que o fiel, um motorista de van, conseguisse
engravidar a esposa. Para esses moçambicanos tratava-se, obviamente, de
cristianismo e de coisa muito oposta à feitiçaria. Em sua investigação
do porquê de trocar os cultos tradicionais por essa mandinga gospel,
Peter apontou, em meio a uma série de explicações, o fato de o
“cristianismo” demandar menos tempo e dinheiro do que o culto
tradicional. Mas é bom frisarmos que demanda dinheiro mesmo assim, e que
não é impossível descrever a atividade de pastor de igreja caça-níquel
como um esquema de pirâmide.
Penso,
portanto, que a expansão de um certo tipo de protestantismo – o das
igrejas caça-níquel que prometem milagres – não tem nada a ver com a
pauta de costumes, nem com a oposição ao “comunismo”. Em vez disso, é
uma atividade econômica que viceja em sociedades sem perspectiva de
crescimento. Nelas, há muita gente disposta a pagar por milagres
financeiros e a entrar em esquemas de pirâmide, já que as chances de
enriquecer pelo trabalho são exíguas. Assim entendemos também por que
(no Brasil e em Moçambique) essas igrejas costumam ter mais apelo para
os mais pobres.
A
Venezuela de Maduro, bem como o Brasil e Moçambique “democráticos” têm,
em comum, a desesperança econômica e o crescimento dessas igrejas
predatórias.
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