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A América Latina, que foi palco de tantos golpes militares, criou mecanismos de reação aos avanços das tropas sobre o Estado, mas não aprendeu a lidar com aqueles provocados pela destruição gradativa de suas instituições, muitas vezes por líderes eleitos. Leonardo Coutinho para a Gazeta do Povo:
Em
2021, a influenciadora Khing Hnin Wai fazia, diante de uma câmera, suas
habituais sessões que misturam ginástica e dança para publicar em suas
redes. De repente, ao fundo, aparecem blindados que passavam em direção
ao parlamento em Nay Pyi Taw, a capital de Mianmar. Enquanto Khing se
movimenta freneticamente, um golpe de Estado se dava em suas costas sem
que ela se desse conta. O vídeo,
que obviamente viralizou, reforçou a percepção geral de golpes
clássicos. Aqueles em que militares montados sobre tanques avançam sobre
o poder civil, tomando-o de assalto.
Não
faz muito tempo, a América Latina se transformou em um terreno fértil
para golpes como aquele transmitido acidentalmente por Khing. De tempos
em tempos, país por país, aparecia um novo evento que levava à derrubada
de presidentes, que eram substituídos por militares.
Em
1964, há exatos 60 anos, os militares chegaram ao poder por uma via bem
sui generis. Eles não tomaram o poder exatamente pela força, mas, sim,
com o amparo de parcela significativa da população e a participação ativa do Congresso.
Mesmo
assim, estavam lá os homens de farda e seus oficiais generais dando as
ordens no país. No Brasil, foram 21 anos assim. Nos vizinhos Argentina,
Chile e Uruguai, a conquista do poder envolveu mais força bruta e os
regimes se estenderam por menos tempo. Bolívia e Paraguai também foram
palcos de uma sucessão de golpes, quase nunca lembrados, mas que sempre
seguiam a cartilha do golpe clássico. Com seus militares, a força e a
ruptura.
Mas os tempos mudaram, e os golpes também.
Muita
gente ainda insiste em acreditar que sem pelo menos um soldado e um
jipe não se dá um golpe de Estado. Por essa razão muito simples, as
pessoas, no geral, só conseguem assimilar a ideia quando há o
ingrediente militar envolvido.
Como
resultado direto disso, é quase impossível para a maioria entender os
mecanismos sistemáticos de destruição da democracia que levam ao mesmo
objetivo dos golpes clássicos, mas sem chamar muito a atenção.
A
América Latina, que foi palco de tantos golpes militares, criou
mecanismos de reação aos avanços das tropas sobre o Estado, mas não
aprendeu a lidar com aqueles provocados pela destruição gradativa de
suas instituições, muitas vezes por líderes eleitos.
Esta
coluna já tratou por diversas vezes sobre o tema. Em 2019, o boliviano
Evo Morales renunciou à presidência e fugiu dizendo-se vítima de um
golpe. Muita gente embarcou na versão dele, pois, afinal, como está
prescrito nos manuais, apareceram uns oficiais gordinhos que fizeram um
pronunciamento para que ele deixasse o poder.
Morales, na realidade, era o golpista da história.
Por anos a fio, ele mudou as regras em seu favor, implodiu a democracia
e montou as condições para sua perpetuação no poder sem que ninguém se
desse conta de que havia um golpe em curso na Bolívia.
Na
Venezuela não é diferente. Hugo Chávez foi eleito na última eleição
livre do país, em 1998. Depois disso, ele governou o país até a sua
morte em 2013 e o deixou de herança para Maduro, que segue até hoje e
não vai largar o osso. Ao longo de 25 anos, Chávez sobreviveu a uma
tentativa de golpe militar, em 2002, e depois disso ele trabalhou para
implodir as instituições e tomar o controle do país.
Isso
não se deu de uma hora para outra, tampouco foi sutil. As pessoas
percebiam que havia uma perda gradual da democracia, mas insistiam em
negar que havia uma ditadura em construção. Maduro assumiu de vez o
perfil autocrático do regime, mas com um hibridismo diversionista que
serve para parte significativa do mundo ainda se enganar ou reproduzir
as mensagens e conceitos que são de interesse do regime. Um deles é chamar de “eleição” o que não é eleição.
No
Brasil, 60 anos depois do golpe de 1964, muita gente acredita que o
país esteve na iminência de repetir a história. Os depoimentos do núcleo
do governo indicam as tensões golpistas de Jair Bolsonaro na reta final
de seu governo. Cercado de aloprados, o presidente chegou a acreditar
que daria para empregar as Forças Armadas para restabelecer a ordem
democrática. Mas Bolsonaro não tinha os militares, não tinha a mídia,
não tinha a classe política, não tinha o empresariado. Não tinha nada.
O que restou foi uma mini-insurreição popular.
Mas
o fato de o Brasil ter flertado com o golpe – ainda que apenas no
desejo – é o sintoma de que a saúde democrática do país não está nada
bem. Que tal pensar que o Brasil está sofrendo essa nova modalidade de
golpe, sob ações paulatinas de corrosão da democracia? O delírio
golpista, que marcou o fim de 2022 e início de 2023, não seria apenas um
dos sintomas e não a causa?
Com
um pouco de esforço, dá para ver sinais claros de que o processo de
corrosão institucional no Brasil criou as condições para que, sob o
pretexto de salvar, se agravasse o problema.
Engana-se
quem pensa que salvou a democracia no Brasil. Talvez ela nunca tenha
estado ameaçada como se acreditou. Ou talvez ela esteja mais ameaçada do
que nunca.
Feliz Páscoa!
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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