LOG ORLANDO TAMBOSI
Quem
votou em Kate? Ela não canta, dança ou representa, tanto que muita
gente só ouviu sua voz pela primeira vez quando anunciou estar com
câncer. Nos eventos públicos, é a grande personagem de uma espécie de
reality show sem áudio: recebe flores e autoridades estrangeiras, visita
escolas e hospitais, participa dos estranhos ritos da monarquia
britânica que envolvem equinos e humanos em uniformes coloridos,
patrocina boas causas e cumprimenta infindáveis vezes o público atraído
pelo “pó mágico” da monarquia (não aquele em que todo mundo está
pensando). Por que tanta gente sentiu que estava sofrendo um golpe
pessoal quando ela anunciou a doença e o tratamento que a tiraram da
esfera pública e a trancaram na esfera privada, na qual a monarquia
fenece sem os vasos comunicantes que a tornam, ao mesmo tempo, uma
instituição de tradição milenar e a representação viva, quando não
borbulhante, da nação? Porque a família real é um arquétipo de todas as
famílias.
Inúmeros
pensadores já tentaram decifrar os mistérios que garantem a
sobrevivência de um sistema tão anacrônico. Uma das melhores tentativas
foi feita por Roger Scruton, o filósofo do conservadorismo chique. “Não
tendo sido eleito pelo voto popular, o monarca não pode ser visto como o
representante apenas da geração atual. O monarca é, no sentido
verdadeiro, a voz da história”, analisou. “Isso não significa que reis e
rainhas não possam ser loucos, irracionais, egoístas ou tolos.
Significa, ao contrário, que devem sua autoridade e sua influência
precisamente ao fato de que falam por algo que vai além dos desejos
atuais de eleitores atuais.”
A
questão do poder intangível da realeza fica complicada quando tem gente
ganhando dinheiro, e não apenas o prazer mesquinho de fazer fofoca com
famosos, para explorar a boataria que o “desaparecimento” de Kate
provocou. E “atores hostis” como Rússia e China insuflam o
conspiracionismo para enfraquecer as instituições. O jogo é pesado. É
também injusto que uma mulher de 42 anos fazendo quimioterapia, com
todos os efeitos que o tratamento provoca, tenha que aparecer para
anunciar o mau pedaço pelo qual está passando. Mas é inevitável. A fama e
os privilégios de que desfruta exigem a suspensão das barreiras entre
público e privado.
Hilary
Mantel, a autora da formidável trilogia sobre Thomas Cromwell, o homem
que o chefe, Henrique VIII, mandou decapitar, escreveu há alguns anos
que Kate parecia “desenhada por um comitê”, tinha um “sorriso
plastificado” e seu único propósito era produzir herdeiros. Comparou-a a
Maria Antonieta, “devorada viva pelas roupas”, cujos cabelos, segundo a
lenda, ficaram brancos quando a família real francesa foi interceptada
na fuga que a salvaria da guilhotina. A comparação agora soa tenebrosa
diante da perspectiva de que a princesa perca os lindos cabelos. A
escritora depois pediu desculpas pelas ofensas. Mas Hilary Mantel
acertou quando disse que a morte da princesa Diana, a sogra que Kate
nunca conheceu, foi um momento revelador em que “nossa visão clareou e
vimos os arquétipos em alto e bom som, a psique coletiva em ação e os
deuses puxando os cordões” do destino. Não é uma perfeita descrição da
situação da atual princesa de Gales?
Publicado em VEJA de 29 de março de 2024, edição nº 2886
Postado há 2 hours ago por Orlando Tambosi
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