Passei o dia todo no sofá a ver nas televisões o funeral de Isabel II. Não pertenço, decididamente, à categoria dos portugueses que, nestas circunstâncias, declaram enfaticamente que “já estão fartos”. Texto do professor Paulo Tunhas para o Observador:
Até hoje, foi uma semana cheia.
Segunda-feira.
Passei o dia todo no sofá a espirrar para lenços de papel e a ver nas
televisões o funeral de Isabel II. Não pertenço, decididamente, à
categoria dos portugueses que, nestas circunstâncias, declaram
enfaticamente que “já estão fartos”. Por mim, confesso, não me fartei
nada. O rigor milimétrico de todo o cerimonial consecutivo à morte da
rainha, que culminou segunda-feira em Windsor, fascinou-me como há muito
tempo nada na televisão me tinha fascinado. Só os ingleses, um povo de
actores natos, é que podem dar-se ao luxo de tamanha pompa e
circunstância sem caírem por um só instante no ridículo.
A
etapa final, no castelo de Windsor, raiou a perfeição. Não me refiro
apenas aos magníficos hinos do Common Prayer Book cantados pelo coro.
Refiro-me à cerimónia no seu todo e a cada um dos seus momentos. Quando,
por exemplo, o Lord Chamberlain quebra em duas partes uma varinha e
deposita as partes partidas em cima do caixão da rainha, simbolizando o
fim da soberania da monarca, viajamos instantaneamente no tempo. E todo o
ritual é compatível com as mais humanas emoções. Como quando, por
exemplo, o Royal Piper toca, na sua gaita-de-foles, um belo lamento, e,
enquanto o caixão vai lentamente descendo para a cripta, se afasta a
passos espaçados e regulares, até sair de cena e a música se ir perdendo
na distância, como entre brumas.
Não,
de facto não me “fartei” nada. Agradeci mesmo muito a extraordinária
lição de representação, no duplo sentido da palavra, que não é tão duplo
assim em alguém como Hobbes.
Terça-feira.
Por entre ininterruptos espirros para lenços de papel, decidi passar a
outra morte e pus-me a ler o livrinho que o historiador alemão Joachim
Fest dedicou aos últimos dias de Hitler no bunker de Berlim, um dos
livros que serviu de base para o filme “A queda”. Tinha já lido há
alguns anos o livro que, logo em 1946, Hugh Trevor-Roper dedicara ao
assunto. O livro de Fest, publicado em 2002, traz alguma informação
nova, indisponível em 1946. Em todo o caso, é uma magnífica história da
loucura humana levada à dimensão mais extrema.
Com
as tropas soviéticas do marechal Zhukov aproximando-se a grande
velocidade de Berlim, Hitler continuava a imaginar delirantemente
operações ofensivas e a ver sinais mágicos da sua salvação em
acontecimentos que obviamente nunca o salvariam de nada, como, por
exemplo, a morte de Roosevelt, na qual ele via a repetição da morte da
czarina Elizabete, que havia permitido a salvação de Frederico, o
Grande. A vida no bunker desmazelara Hitler, a sua roupa estava suja e o
corpo era sujeito a agitações descontroladas. Dos cantos da boca
pendiam restos de bolos que comia em grandes quantidades. Nos corredores
do bunker, como notou Albert Speer quando foi despedir-se do Führer, os
militares continuavam sentados, a falar e a fumar, quando Hitler,
cambaleante, por eles passava.
Entretanto,
Himmler e Göring, e os seus gangs respectivos, procuravam salvar-se de
uma maneira ou de outra. Himmler planeava um encontro com o general
Eisenhower e perguntava-se como o deveria saudar quando o visse: uma
vénia ou um aperto de mão? Apenas Goebbels se manteve fiel,
suicidando-se com a sua mulher, como se sabe, depois de matarem as suas
seis crianças e depois de Hitler e Eva Braun já se terem também
suicidado.
Nos
últimos tempos, Hitler lamentava alguns erros passados. Sobretudo um,
que o levava ao desespero: ter sido demasiado bom, ter-se excedido na
fraqueza da bondade. Daí os seus renovados sonhos de destruição,
inclusive da própria Alemanha. Nada na Alemanha lhe deveria sobreviver:
nada de indispensável à vida da sociedade ou que lembrasse alguma
grandeza passada – as obras de arte e os monumentos históricos deveriam
igualmente desaparecer para todo o sempre. Tudo deveria transformar-se
num “deserto de onde todo o traço de civilização tivesse desaparecido”,
segundo as suas próprias palavras. No fundo, ao tempo do seu
quinquagésimo sexto aniversário, o pensamento da destruição da Alemanha
aliviava Hitler. A destruição havia sido, no fundo, a sua única paixão e
a destruição da Alemanha elevava essa paixão a algo quase sublime. Se
as cinzas de Hitler, no jardim da Chancelaria, ainda conseguissem pensar
alguma coisa, aspirariam sem dúvida à possível satisfação desse
particular desejo de destruição.
Quarta-feira.
Os russos de Putin são, sem dúvida curiosos. A dificilmente imaginável
Maria Zakharova apelidou de “blasfémia” o facto de Putin não ter sido
convidado para o funeral de Isabel II. Poucos dias depois, na televisão
do Estado russa, uma senhora dizia que se tinha perdido uma boa
oportunidade ao não se ter lançado uma bomba atómica sobre Londres no
dia do funeral. Razão, peço desculpa pelo simplismo, tinha Kipling: os
russos são os melhores dos orientais, mas como ocidentais são uma
desgraça. Razão, é claro, apenas na segunda parte da frase.
Tinha-me
levantado particularmente cedo para acabar de escrever uma prosa que me
tinha sido encomendada. Mal acabei o trabalho, e com os lenços de papel
sempre à beira do nariz a pingar, liguei a televisão e deparei-me com o
discurso de Putin, anunciando referendos nas regiões ocupadas e a
mobilização parcial, além de ameaçar o Ocidente com armas nucleares,
acusando esse mesmo Ocidente de o estar a ameaçar a ele. O homem é
literalmente imune à verdade e a mentira é nele a própria essência do
seu ser. Compreende-se a admiração que suscita no PCP e em vários
“pacifistas” sortidos que por aí andam. Uma admiração, note-se que não é
partilhada por muitos russos, como aqueles que abarrotam os aviões para
fugirem do país ou fazem filas de carros de trinta e cinco quilómetros
junto à fronteira com a Finlândia com a mesma intenção.
No
ponto a que chegámos, uma pessoa apanha-se a desejar para o homem um
destino idêntico ao de Hitler. Por mim, não insisto particularmente que
ele passe pela fase dos pedaços de bolo dependurados do canto da boca.
Mas seria sem dúvida bom que fossem os próprios russos a cercá-lo, sem
precisarem agora dos “órgãos de Estaline”. Seria romântico, não seria?,
um casamento de última hora com Maria Zakharova. E o Kremlin tem
jardins, não tem?
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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