Artigo de Fernão Lara Mesquita, colaborador do Estadão, mas publicado ontem apenas em seu blog, o Vespeiro:
A concentração desenfreada da riqueza já quase acabou com a
democracia americana uma vez. Por definição, é para um único vencedor
final que empurra a “competição”, o outro nome da guerra de todos contra
todos que define a condição natural do bicho homem, a menos que a
civilização – essa frágil construção que procura nos afastar da lei da
selva – anteponha um limite artificial a ela. É nessa brecha estreita
que se insere toda a História da Civilização. E dentro dela, a da
democracia americana que, ao contrário da “narrativa” prevalecente, é a
única, historicamente, que conseguiu domar a competição sem matar a
produção e a inovação ao longo da maior parte do século 20.
O mundo está cheio de exemplos em que o poder político consegue matar
a competição tomando para si todo o poder econômico. Mas essa fórmula
(a socialista) mata o progresso junto com a liberdade. Exemplo de “doma”
– isto é, de por a fera da ganância a serviço do progresso com
liberdade e justiça social – só existe um. O truque genial foi não
tratar de desconcentrar o poder econômico concentrando ainda mais o
poder político, mas obrigando os empresários que conquistassem mais de
30% de cada mercado a dividir sua operação com outros empresários que
teriam de concorrer entre si em benefício do consumidor.
Sim, a essência da revolução americana – também conhecida como
democracia – é a desconcentração do poder político. Não ha como
desmerecer a obra da melhor geração da humanidade, a nata do Iluminismo
que emigrou para aquele novo planeta habitável. Mas instalar o sistema
de “governo do governo” que eles criaram só se tornou possível porque a
desconcentração do poder econômico veio antes.
O curioso caso dos Estados Unidos faz lembrar o curioso caso de
Benjamin Button daquele filme. A história do país é que começa
invertida. Eles já nascem como todos nós sonhamos terminar um dia. Um
país de pequenos proprietários. Importavam colonos contra a entrega, a
cada um, de 50 acres (20 hectares) de terra (o headright system) num
mundo onde nunca existira a possibilidade de quem nascia sem, vir a
possuir terra. O padrão era o Brasil, distribuído inteiro, em fatias, a
12 amigos do rei que ficavam encarregados de manter a multidão dos
servos, servos para todo o sempre.
O erro dos “Pais Fundadores”, sozinhos num mundo cercado de
monarquias por todos os lados, foi blindar, enquanto durassem, os
mandatos dos representantes eleitos pelo povo para governar o governo. A
competição civilizada não sobreviveu à impunidade garantida aos fiscais
da regra do jogo. Dos políticos desonestos ela foi logo estendida aos
empresários desonestos, cada um no seu campo tratando de matar seus
concorrentes honestos, uns fazendo regras tortas para os outros ganharem
muito dinheiro e os outros usando esse dinheiro para reeleger seus
benfeitores.
Lembra algo?
A quebra do “padrão tecnológico” imposto pelo advento das ferrovias
que, nos meados do 19, abriram um mundo novo de riquezas imensas ao qual
só se podia chegar ou sair por meio delas, associado à corrupção
política, tornou furioso o processo de acumulação da riqueza de todos
nas mãos de uns poucos pelo expediente da expulsão dos competidores do
mercado.
Na virada para o 20 deu-se a segunda revolução americana, ainda mais
radicalmente transformadora que a primeira. Se o povo não podia mais
escolher, nem seu patrão, nem seus fornecedores – era o que dizia a
realidade – de nada valiam os poderes formais atribuídos a ele pela
constituição. E como tudo começava na impunidade dos políticos, a
resposta foi fragilizar-lhes os mandatos. Recall a qualquer momento e
direito de propor e recusar leis por referendo foi a arma brandindo a
qual foram impostos os novos limites à concorrência em favor do
consumidor e, por tabela, do trabalhador, os outros nomes de sua
majestade o povo.
No ocaso do século 20 a força disrruptiva da informática jogou tudo
novamente por terra. A anulação das fronteiras nacionais tornou os
Estados Unidos vulneráveis, ao mesmo tempo, ao roubo de tecnologia e
design e seu mercado aberto aos produtos desse roubo sistemático
executado por mão de obra quase escrava. Os donos de apenas quatro das
“ferrovias da informação” pelas quais tudo na economia de hoje tem de
passar são maiores que a economia da Alemanha, a quarta do mundo. A
Apple sozinha vale mais que o PIB do Brasil. E, como todo mundo que já
teve algum poder, estes, que têm demais, usam e abusam dele. Já não era
sem tempo que o congresso americano, num movimento suprapartidário,
tenha dado o primeiro tímido passo para lembrar-los de sua
revolucionária história antitruste.
A falta de ação nos últimos 40 anos de recordes sucessivos de fusões e
aquisições de empresas em meio ao pânico despertado pela competição
predatória dos monopólios do capitalismo de estado chinês precipitou a
corrida do “Benjamin Button” americano de volta à infância da
humanidade. Cada vez menos consegue-se vencer pelo trabalho na antiga
Terra da Oportunidade. Monopólios só convivem com monarquias como são os
sistemas de partido único. Não é a ocupação gramsciana da imprensa e
dos outros meios de difusão do pensamento dos Estados Unidos que estão
empurrando a juventude americana para a tentação socialista. Essa
“vanguarda”, como todas, só está correndo atras do “achinezamento” do
seu mercado de trabalho.
Sim, os bárbaros são bárbaros. Mas eles só invadem os impérios que
estão caindo de podres. Não será, porém, com as bravatas eleitoreiras de
Donald Trump que se vencerá esse inimigo. O remédio para as chinas da
vida é o mesmo do desmatamento da Amazônia. Tem de haver um imposto
contra produtos que contenham insuficiência de direitos do trabalho e
roubo de design e de pesquisa e desenvolvimento. Forçar a
ocidentalização do mercado de trabalho chinês é a única alternativa
realista ao “achinezamento” do mercado de trabalho ocidental. E já pode
até ser tarde demais…
BLOG ORLANDO TAMBOSI
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