A agência trabalhou com abusadores de crianças e possibilitou o tráfico de drogas. Matthew Petti para a revista Oeste:
Para
justificar a extinção da Agência dos Estados Unidos para o
Desenvolvimento Internacional (USAID), a Casa Branca destacou alguns dos
programas de diversidade, equidade e inclusão (DEI) mais flagrantes que
os EUA financiaram no exterior, como um programa de capacitação LGBT na
Sérvia e a controversa pesquisa médica da USAID em Wuhan.
Nem
sempre os fatos estão corretos, como quando o governo americano afirmou
que uma doação de US$ 100 milhões para uma instituição médica global
eram “preservativos para Gaza”. Alguns analistas conservadores chegaram a
afirmar que as assinaturas de membros da equipe da USAID do site
Politico eram prova de uma conspiração para manipular a mídia — uma
teoria repetida pelo próprio presidente Donald Trump.
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O
governo americano foi criticado depois de afirmar incorretamente que
uma doação médica de US$ 100 milhões para Gaza era de preservativos, o
que gerou teorias de conspiração reforçadas por Donald Trump
Os
especialistas costumam zombar da forma como a ajuda externa é tratada
como saco de pancadas. Observam que, embora essa ajuda represente menos
de 1% do orçamento federal, as pesquisas de opinião mostram
consistentemente que os americanos acreditam que ela chegue a cerca de
25%. Mas talvez os participantes dessas pesquisas não estejam tão
confusos quanto pode parecer. Um estudo realizado em 2019 pela
Instituição Brookings, de centro-esquerda, fez uma boa argumentação —
quando abordam o desperdício da “ajuda externa”, os americanos também se
referem aos custos de aventuras militares no exterior, que consomem uma
parte muito maior do orçamento.
A
ajuda externa em geral está ligada a guerras no exterior. Os cinco
principais recebedores de ajuda dos EUA (incluindo programas da USAID e
de outros países) de 1945 a 2023 foram Israel, Egito, o antigo Vietnã do
Sul, Afeganistão e Coreia do Sul.
A
maior parte dos gastos da USAID no ano fiscal de 2023 (o levantamento
mais recente para o qual existem dados completos disponíveis) foi de US$
18 bilhões em “desenvolvimento econômico” — quase inteiramente
destinada à Ucrânia, uma doação de US$ 14,4 bilhões para manter sua
economia funcionando em tempos de guerra. A assistência humanitária, ou
seja, a entrega de alimentos e outros itens essenciais, consumiu US$ 9,4
bilhões, enquanto US$ 7,2 bilhões foram alocados para assistência
médica. Outros US$ 3,7 bilhões foram usados para custos administrativos.
As
categorias mais politizadas — “Democracia, Direitos Humanos e
Governança”, “Educação e Serviços Sociais” e “Paz e Segurança” —
totalizaram US$ 3,3 bilhões em gastos da USAID no mesmo ano. Esses são
os tipos de programa que tentam identificar os “agentes de mudança” em
outros países, orientar reformas políticas à moda dos EUA no exterior e
exportar os ideais culturais americanos.
Claro,
um programa pode ser relativamente pequeno e, ainda assim, ser um
desperdício. Muitas vezes os danos causados podem exceder o valor que
está na etiqueta de preço. Há um longo histórico de projetos da USAID
que apoiaram más organizações, fomentaram o ressentimento antiamericano,
criaram uma dependência doentia do dinheiro estrangeiro e causaram mais
danos do que benefícios. Aqui estão alguns dos exemplos mais infames:
Financiamento da produção de drogas no Afeganistão (US$ 1,46 bilhão)
As
drogas foram o elefante na sala durante a fracassada guerra dos EUA no
Afeganistão. O ópio era uma parte muito grande da economia desse país
pobre e devastado pelo conflito. A luta entre o Talibã e a república
afegã apoiada pelos EUA muitas vezes pareceu mais uma guerra por
território entre gangues rivais de narcotraficantes, com os militares
dos EUA protegendo alguns campos de ópio e bombardeando outros.
A
USAID tentou mudar essa situação, gastando US$ 1,46 bilhão em
“programas de desenvolvimento alternativo” de 2002 a 2017. O objetivo
era incentivar os agricultores a se afastarem do ópio, fornecendo
fertilizantes, equipamentos e outros tipos de assistência para um
cultivo que não fosse de ópio. Mas parte desse dinheiro “acidentalmente
apoiou a produção de papoula”, informou o Gabinete do Inspetor-Geral
Especial para a Reconstrução do Afeganistão (SIGAR) dos EUA em 2018.
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A plantação de papoula é a principal fonte para a produção de ópio, utilizado na fabricação de opioides e drogas ilícitas
Em
outras palavras, os fazendeiros afegãos ficaram felizes em receber a
ajuda da USAID enquanto continuaram plantando papoula. Por exemplo, a
produção de ópio aumentou em 119% na Zona Alimentar de Kandahar entre
2013 e 2015, depois que a USAID ajudou a expandir os sistemas de
irrigação no local, de acordo com o SIGAR. De modo geral, o tamanho dos
campos de ópio foi de quase zero em 2001 — o Talibã havia tentado impor
uma proibição de drogas na véspera da invasão dos EUA — para 350 mil
hectares (uma área um pouco maior que o Estado americano de Rhode
Island) em 2017.
A
fracassada guerra contra as drogas não foi a única extravagância da
USAID no Afeganistão. Em uma análise de 2021 sobre o esforço de guerra, o
SIGAR observou que a USAID gastou US$ 335 milhões em uma usina de
energia que raramente era ativada, US$ 175 milhões em estradas que as
enchentes destruíram em menos de um mês e US$ 7,7 milhões em um parque
industrial que não tinha energia. Questionada pelo SIGAR sobre o
planejamento deficiente, a USAID declarou que o microgerenciamento
desses projetos seria “contraproducente” para o objetivo de “aumentar a
autossuficiência afegã”.
Escândalos de abuso sexual de crianças na África (US$ 29,6 milhões)
Uma
instituição de caridade financiada pela USAID no Quênia supostamente
encobriu um abuso sexual desenfreado de crianças. A USAID financiou uma
segunda instituição de caridade na República Centro-Africana um mês
depois de um grande escândalo de abuso sexual, a Bloomberg noticiou no
ano passado.
O
Instituto de Alívio para as Crianças de Deus, que administrava um
orfanato para crianças quenianas afetadas pela aids e projetos
semelhantes, recebeu muitos elogios do governo dos EUA. Desde 2013, a
USAID doou US$ 29,3 milhões ao instituto. Em 2018, o então
vice-presidente Mike Pence deu as boas-vindas à sua fundadora, Mary
Owens, no palco de um evento do Dia Mundial da Luta Contra a Aids.
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Mary Owens, fundadora do Instituto de Alívio para as Crianças de Deus
Em
2021, um delator revelou à USAID que a instituição guardava um segredo
obscuro. O inspetor-geral da USAID logo determinou que os funcionários
do Instituto de Alívio para as Crianças de Deus “sabiam ou deveriam
saber de vários incidentes” de abuso sexual de crianças, “mas não
tomaram medidas corretivas eficazes para lidar com esse abuso”. Em
alguns casos, as vítimas foram forçadas a pedir desculpas por terem
provocado o próprio abuso, informou o Washington Post.
A
USAID cortou o financiamento em 2023 e entregou os materiais à polícia
queniana. O conselho de arrecadação de fundos, sediado nos EUA, também
rompeu os vínculos com a instituição beneficente, e o conselho queniano
forçou Owens a renunciar.
Em
novembro de 2019, a CNN revelou que a Caritas Centrafrique, uma
instituição beneficente na República Centro-Africana, estava sendo
administrada por Luk Delft, um belga condenado por abuso de menores, e o
acusou de continuar abusando de crianças centro-africanas. No mês
seguinte, a USAID começou a financiar a Caritas Centrafrique por meio de
um programa conjunto das Nações Unidas.
Embora
Delft tenha sido mandado de volta para a Bélgica — e depois condenado
por posse de pornografia infantil, mas absolvido da acusação de abuso de
menores centro-africanos por insuficiência de provas —, o
inspetor-geral da USAID constatou que a Caritas Centrafrique
“possivelmente não contasse com as estruturas e políticas necessárias
para evitar a exploração e o abuso sexual nos programas financiados pela
USAID”. Ainda assim, de acordo com documentos obtidos pela Bloomberg,
as autoridades da USAID se recusaram a cortar o financiamento e
questionaram “a veracidade das provas” contra Delft. Um porta-voz da
agência disse à Bloomberg que os comentários sobre a “veracidade” não
pretendiam “prejudicar os relatos das vítimas”.
O desperdício de US$ 9,5 bilhões em suprimentos médicos
A
USAID prometeu que o Programa da Cadeia Global de Suprimentos de Saúde
quase se pagaria sozinho. O investimento de vários bilhões de dólares, o
maior da história da agência, tinha como objetivo melhorar tanto a
capacidade dos países-alvo de obter suprimentos médicos, que a USAID
nunca mais precisaria fazer um financiamento desse tipo. Alerta de
spoiler: isso não aconteceu.
Como
em muitos casos, o governo pagou demais e entregou de menos. Em 2017,
três anos depois do início do projeto, apenas 7% das remessas tinham
sido concluídas totalmente no prazo. Em meados de 2019, a USAID relatou
alegremente que mais de 80% das remessas estavam dentro do prazo, embora
o tempo médio tenha mais que dobrado. A USAID acabou prorrogando o
contrato com a Chemonics, principal contratada, por dois anos e US$ 2
bilhões.
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Entre
2017 e 2019, a USAID prorrogou o contrato com a Chemonics por US$ 2
bilhões, apesar de atrasos e aumento no tempo médio de entrega
Um
relatório investigativo do Escritório de Jornalismo Investigativo, uma
organização britânica sem fins lucrativos, e da Devex, uma revista que
cobre o setor de auxílio internacional, revelou quanto a situação era
ruim. “Vimos analistas de compras que estavam só inventando coisas”,
disse um ex-funcionário da Chemonics aos repórteres. “Encontramos dados
inúteis e pessoas que não entendiam como funcionava a carga de ajuda
humanitária.”
A
investigação também revelou que 41 pessoas haviam sido presas e outras
39 foram indiciadas por fraude relacionada ao projeto. Em resposta às
perguntas da deputada republicana Mariannette Miller-Meeks, de Iowa,
sobre o relatório, Atul Gawande, funcionário da USAID, insistiu em
fevereiro de 2024 que a agência “não tinha conhecimento de nenhum
superfaturamento ou corrupção”. Nove meses depois, a Chemonics fez um
acordo de pagamento de US$ 3,1 milhões ao Departamento de Justiça dos
EUA por fraude cometida por um dos subcontratados da empresa. A
Chemonics continua a negar qualquer irregularidade.
A
USAID recentemente começou a assinar contratos ainda maiores, de US$ 17
bilhões, com um projeto de cadeia de suprimentos médicos conhecido como
NextGen. A agência disse que seu objetivo era “ajudar os países a se
tornarem autossuficientes, acabando assim com a necessidade de
assistência externa”. Se não deu certo da primeira vez…
Conflito secreto durante a guerra fria
A
USAID foi fundada em 1961, exatamente quando Washington estava se
envolvendo mais no Vietnã. O Grupo Especial (Contra-Insurgência) do
governo Kennedy rapidamente encarregou a agência de “coordenar programas
de assistência econômica com programas militares de ação cívica”. De
forma mais direta: a agência trabalhou lado a lado com as guerras
indiretas da CIA.
No
Laos, um dos vizinhos do Vietnã, a USAID ajudou a CIA a armar e
alimentar guerrilheiros da etnia Hmong, que combatiam as forças
comunistas — e, às vezes, a obrigar os Hmong a lutar. “Como a USAID
decidia para onde o arroz era enviado, os Hmong não tinham como não se
apresentar e lutar”, escreve o historiador Alfred McCoy. Seu livro de
1972, The Politics of Heroin in Southeast Asia (“A política da heroína
no Sudeste Asiático”, em tradução livre), também causou impacto quando
afirmou que a USAID estava ajudando os milicianos Hmong e outros
senhores da guerra a contrabandear ópio.
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A
USAID foi acusada de ajudar a CIA a armar guerrilheiros Hmong no Laos e
facilitar o contrabando de ópio, segundo o historiador Alfred McCoy
“Chefe
da alfândega da fronteira pago / pela USAID, da Central de
Inteligência”, cantou o poeta beatnik Allen Ginsberg, que trabalhou com
McCoy. “A operação toda, dizem os jornais / apoiada pela CIA.”
Enquanto
isso, o Escritório de Segurança Pública da USAID ajudava a treinar a
polícia e as forças de segurança dos aliados dos EUA, incluindo
ditaduras indecentes. O escritório montou uma extensa rede de vigilância
no Vietnã e fundou uma Academia Internacional de Polícia para outros
aliados anticomunistas. O consultor de segurança nacional Robert Komer
argumentou em 1962 que esses programas eram “mais valiosos do que as
Forças Especiais em nossos esforços globais de contrainsurgência”.
A
controvérsia chegou ao auge em 1970, quando os guerrilheiros do
movimento Tupamaros, do Uruguai, sequestraram e assassinaram o consultor
da USAID Dan Mitrione, acusado pelos guerrilheiros de ensinar técnicas
de tortura à polícia uruguaia. O Congresso ordenou que a USAID fechasse
seu Escritório de Segurança Pública em 1973. “Pouco importa se as
acusações [de tortura] podem ser comprovadas”, declarou o Comitê de
Relações Exteriores do Senado. “Elas inevitavelmente estigmatizam todo o
esforço de ajuda externa dos Estados Unidos.”
O
governo dos EUA ainda oferece treinamento para forças policiais
estrangeiras — inclusive as conhecidas por praticar tortura —, mas esses
programas hoje são, em grande parte, administrados pelo Departamento de
Estado.
Enviar um trabalhador humanitário para ser preso em Cuba
Embora
a USAID insista que não é mais uma agência de espionagem, muitas
pessoas, tanto em Washington quanto nas capitais estrangeiras, ainda a
tratam como tal. Desde a década de 1990, o Congresso americano destinou
milhões de dólares para que a USAID enfraquecesse o governo de Cuba. O
governo cubano, por sua vez, tornou ilegal a cooperação com a USAID.
Esses
programas se tornaram um constrangimento para a agência — e deram a
Havana uma vantagem sobre Washington — com a prisão de Alan Gross, um
funcionário terceirizado da agência, em 2009. Gross tinha sido enviado
para facilitar o acesso irrestrito à internet para a comunidade judaica
de Cuba, onde esse serviço é caro e controlado pelo governo. Ele foi
preso em seu hotel com equipamentos de comunicação de nível militar e
foi condenado por espionagem.
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A
prisão de Alan Gross, em 2009, por espionagem em Cuba constrangeu a
USAID, depois que ele foi flagrado com equipamentos militares enquanto
tentava fornecer internet à comunidade judaica local
A
decisão de enviar Gross a Cuba foi altamente questionável. Ele falava
pouco espanhol e não tinha experiência profissional no país. (Mesmo após
a prisão, a Associated Press descobriu que a USAID estava enviando
funcionários para missões de alto risco em Cuba com pouco treinamento.) E
a pequena e precária minoria judaica não queria necessariamente a
“ajuda” que a USAID estava oferecendo. Um líder da comunidade “deixou
bem claro que todos nós estávamos ‘brincando com fogo’”, de acordo com
as anotações de campo de Gross, que foram obtidas posteriormente pela
Associated Press.
“Nada
sobre os programas da USAID em Cuba é secreto nem confidencial, de
maneira alguma”, declarou Mark Lopes, administrador-adjunto assistente
da agência, à Associated Press na época. “Nós simplesmente realizamos
atividades de forma discreta para garantir o máximo de segurança
possível a todos os envolvidos.”
O
governo Obama trocou três membros da Wasp Network, uma rede de
espionagem cubana que havia sido desmantelada na Flórida na década de
1990, pela liberdade de Gross. Assim como aconteceu com o treinamento da
polícia na década de 1970, ex-funcionários dos EUA e membros do
Congresso se preocuparam com o que o caso de Gross — e o programa que
levou a isso — significaria para outros trabalhadores humanitários
americanos no exterior. Eles argumentaram que misturar atividade
política secreta com trabalho beneficente coloca um alvo em ambos.
Mas
os democratas parecem ansiosos para fazer exatamente isso. “A USAID
combate grupos terroristas no mundo todo”, afirmou o senador democrata
Chris Murphy, de Connecticut, em um evento para salvar a agência no
começo de fevereiro. “Ela apoia os combatentes da liberdade em todos os
cantos do mundo.”
Postado há Yesterday por Orlando Tambosi
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