Faz
uso atinado de uma série de metáforas e comparações para dar à história
camadas a mais de significado e beleza, como quando, por exemplo,
compara Kiyoaki com “sua maneira de viver dedicada apenas às emoções” a
“uma bandeira que tremula ao vento”.
O próprio título Neve de primavera,
que insere um resquício de inverno na estação seguinte, indica que
eras, estações, pessoas e gerações morrem, é verdade, mas passam adiante
traços que de certo modo as mantêm vivas.
sobre o autor
yukio mishima, nascido Kimitake Hiraoka em Tóquio em 1925, estreou na literatura com apenas dezenove anos. Pouco depois, com Confissões de uma máscara (1949) e Cores proibidas
(1951), firma-se como o grande talento artístico de sua geração.
Mesclando influências ocidentais e orientais, explorando tabus
temáticos, como a homossexualidade e o culto ao corpo masculino, e
produzindo excessivamente, Mishima não separa sua arte de suas próprias
ações.
Cada
vez mais crítico da ocidentalização do país no pós-guerra, ele leva seu
nacionalismo ao extremo em 1970. À frente de seu grupo paramilitar Tate
No Kai, invade um quartel do Exército japonês em Tóquio buscando
incitar um golpe de Estado que devolveria os poderes divinos ao
imperador. Sem obter a acolhida esperada, termina seu discurso e comete seppuku, suicídio ritualístico samurai, deixando perplexos seus milhões de leitores no Japão e no mundo.
Pela Estação Liberdade, o autor teve publicados Kawabata-Mishima: Correspondência 1945-1970 (2019), volume que traz as cartas trocadas entre ele e seu conterrâneo e Prêmio Nobel Yasunari Kawabata; e os romances Vida à venda (2020), O marinheiro que perdeu as graças do mar (2022) e A escola da carne (2023).
Os demais romances que integram a tetralogia também serão publicados pela Estação Liberdade: Cavalos selvagens (v. 2), O templo da aurora (v. 3) e A queda do anjo (v. 4).
repercussão
“Lemos Neve de primavera
por causa dos incidentes maravilhosos do livro, pitorescos e
filosóficos, e das cenas tão atraentes à contemplação, em cuja aliança
emocional com a natureza, emancipada da ‘patética falácia’ do Ocidente,
Mishima se mantém consistentemente japonês.”
— Hortense Calisher, The New York Times
“Em Mar da fertilidade,
[Mishima] escolheu se valer de uma grande tela, como fazia seu herói
Thomas Mann. Assim, ele exibe todos os seus dons: bom olho para o
detalhe e a construção de cenas, interesse na sensualidade e um
desprendimento arrojado que chega a assustar de tão conciso.”
— Richard T. Kelly, The Guardian
trechos
“Quando
falaram na escola a respeito da Guerra Russo-Japonesa, Kiyoaki Matsugae
experimentou perguntar a seu amigo mais próximo, Shigekuni Honda, se
ele se recordava bem daquela época; porém, a memória de Shigekuni
também era difusa, e ele se lembrava apenas vagamente do momento em que
fora levado até o portão para ver a procissão luminosa. Como ambos já
contavam onze anos de idade quando a guerra acabara, Kiyoaki pensou que
seria natural terem uma recordação um pouco mais nítida. Mas os colegas
do mesmo ano escolar que falavam de modo presunçoso sobre aquela época
na verdade não faziam mais que adornar as lembranças que acreditavam ter
com as conversas que haviam entreouvido dos adultos.” [p. 9]
“No
entanto, o peito másculo e coberto de pelos de Iinuma, o qual vinha
realizando esse diálogo dentro de seu coração com tanto fervor a ponto
de se esquecer do frio, despontou para fora da gola do quimono e o
entristeceu, por fazê-lo constatar que não lhe fora concedido um corpo
que correspondesse ao seu coração límpido. Em contrapartida, a alguém
possuidor de um corpo puro, alvo e gracioso como Kiyoaki, faltava um
coração simples, masculino e fortificante.” [p. 81]
“Ele
perdera Satoko. Estava bem assim. Dentro de algum tempo, aplacou-se
até mesmo aquela sua raiva tão intensa. Suas emoções foram poupadas de
modo esplêndido: se ele estivera alegre e animado como se houvesse sido
acesa uma chama dentro dele, e se a vela que antes derretia em cera
quente tivera sua chama apagada com um sopro, deixando seu corpo
isolado em meio às trevas, em compensação ele se encontrava agora em um
estado similar ao de quem já não teme que algo venha lhe roer o corpo.
Pela primeira vez aprendeu que a solidão é uma trégua.” [p. 175]
“Os
dois se deitaram no tatame e voltaram os olhos para o teto, onde havia
ressuscitado o som violento da chuva. O palpitar no peito de ambos não
sossegava tão facilmente, mas Kiyoaki, cujo cansaço não é preciso
mencionar, encontrava-se enlevado por não querer reconhecer sequer que
algo havia chegado ao fim. Contudo, se tornou claro também que entre os
dois pairava um arrependimento semelhante a uma sombra, acumulando-se no
quarto que anoitecia pouco a pouco. Ele pensou ter ouvido o sutil
tossir de uma pessoa de idade além do genjibusuma e, embora houvesse
começado a levantar o corpo outra vez, Satoko puxou seu ombro de leve
para impedi-lo.” [p. 200]
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