“É
uma fast foda. O self service do aplicativo de chat amarelo causa
saciedade momentânea e aprofunda a perenidade da solidão. Eu tenho
quarenta e um anos.”
Trecho do livro “Amâncio”, de Ronaldo Fernandes
O novo livro do escritor e dramaturgo pernambucano Ronaldo Fernandes (@ronfernadis), “Amâncio” (Editora Paraquedas, 102 págs.),
escancara um tema delicado: a solidão do homem negro homossexual. O
personagem que intitula a obra é quem vai a cada capítulo descortinando
trechos da própria história. As memórias são permeadas de inquietudes e
retratam a descoberta e vivência da sexualidade. Cada relato é
atravessado por experiências que por vezes esbarram em violências
assentadas no racismo, machismo e homofobia.
A
obra, que nasceu como peça teatral, apresenta recortes reais e
ficcionais de relatos ouvidos pelo autor no período em que viveu com
Amâncio, seu tio. “Por meio das histórias que fui ouvindo do meu próprio
tio e de pessoas que conviveram com ele, pude ampliar o olhar para a
história de tantos homens negros, nordestinos e homossexuais que
sofreram abusos e violências sem que os reconhecessem como tais.”
A
ideia de fazer do espetáculo uma obra literária veio em um momento de
fragilidade do autor. “O livro nasceu num período em que estive com
problemas de saúde e precisei me isolar”. E completa: “Esse isolamento
me trouxe perdas, inclusive de amigos queridos que não entenderam a
minha ausência e isso me lembrou meu tio, que apesar de estar sempre
rodeado de amigos, me pareceu solitário na negação da sua sexualidade”.
Ronaldo
conviveu com seu tio Amâncio dos três aos 17 anos, atribuindo a ele uma
participação ativa na construção da própria identidade, ainda que eles
nunca tenham conversado um com o outro sobre a orientação sexual do tio,
já falecido. “Esse diálogo que nunca tivemos em vida, só pode acontecer
pela arte: primeiro na peça e agora no livro”, conta.
Por um olhar mais atento e amoroso para homens negros e homossexuais
“Amâncio”
é composto por 27 histórias que se passam ora em Carpina, Zona da Mata,
interior de Pernambuco, ora em São Paulo, capital paulista. Não há uma
linearidade temporal, a narrativa intercala lembranças desde a infância
até a velhice do protagonista. O autor define esse estilo como romance
fragmentado. “Sempre foi uma característica minha como dramaturgo que
acabei levando para a literatura”, explica Ronaldo.
De
maneira corajosa e honesta, Amâncio narra os próprios anseios,
assombros, temores e medos. Há descrições detalhadas dos desejos e
impulsos sexuais do então menino e, ainda, como essas emoções são
deturpadas pela violência real e simbólica ao qual ele é submetido
reiteradamente.
Com
destreza, Ronaldo desloca o leitor para dentro das experiências
devastadoras vivenciadas por Amâncio. Cada capítulo é entremeado por um
assunto que se desdobra até alcançar o acontecimento principal. Essa
cadência com a qual a trama evolui envolve o leitor e o instiga a seguir
para a próxima página.
Ao
remontar a vida de um homem negro que era também afeminado, homossexual
e morador do interior do nordeste, o autor expõe as vulnerabilidades às
quais o protagonista estava sujeito e implicitamente evoca um olhar
mais atento e amoroso para aqueles que passaram pelos mesmos percalços.
Para Ronaldo, as mensagens do livro podem ser descritas quase como um
processo terapêutico que envolve quatro passos. “Aceitação, compreensão,
entendimento e expurgo”, define.
Ator, dramaturgo e escritor: as várias facetas de Ronaldo Fernandes
Ronaldo
Fernandes é natural de Paudalho, cidade da Zona da Mata de Pernambuco.
Ainda adolescente mudou-se para Santos, em São Paulo. É bacharel em
Administração de Empresas e diretor de operações em uma empresa de
tecnologia. Ao mesmo tempo dedica-se à área cultural. É pós-graduado em
direção e atuação teatral, além de ator, dramaturgo e escritor.
Na
cidade litorânea paulista fundou a Cia Trilha de Teatro e integra o
Grupo Tescom de Teatro, coletivos artísticos da região da baixada
santista. Em sua trajetória no palco e bastidores, atuou em mais de uma
dezena de espetáculos, entre eles: 50+- o Game da Memória, O Plano,
Benjamin - o Filho da Felicidade, Casamento de Sangue em Santos, Nó Na
Garganta, Mac & Beth – Eleição e confusão na Pequeno Rei e Romeu e
Julieta: Um romance de virar a cabeça.
Esse
é o segundo livro de Ronaldo pela editora Paraquedas. Antes, lançou
“Avôa”, uma coletânea de histórias inspiradas na memória do autor com a
avó, e agora, pelo selo, lança seu primeiro romance. “Escrever ‘Amâncio’ foi absolutamente novo”, declara o pernambucano.
Trecho do livro (págs. 52 e 53):
“– Eu adoro canjica – falou, chegando bem mais perto.
Pude sentir o calor do seu corpo.
– Munguzá! – corrigi.
– Pelo que eu sei, o nome dessa comida é canjica.
– Canjica é aquela ali. – Apontei para a travessa com
canjica.
– Aquilo é curau.
– Curau?
– Sim. Curau.
– Já vi que você não é daqui. Deve ser de São Paulo.
– Sou de São Vicente.
– Veio para o São João?
– Sim.
– E tá gostando?
– Muito. Principalmente das comidas.
– Vai voltar chamando canjica de munguzá – disse eu,
rindo.
– E curau de canjica – respondeu ele, rindo também.
– Você aprende rápido, hein?
– Depende do professor.
– Nem sabia que eu era professor.
– Pois é...
– Qual seu nome?
– Roberto. E o seu?
– Amâncio!
– Amâncio, posso falar uma coisa no seu ouvido?
– Nossa, mas já quer falar no pé do ouvido? – falei com
espanto e rindo.
– A oportunidade faz a hora. E tá muito barulho aqui.
Quase não estou te escutando.
– É o forró.”
Adquira “Amâncio” pelo site da editora Paraquedas:
https://www.lojadaclara.com.br/amancio-ronaldo-fernandes
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