BLOG ORLANDO TAMBOSI
O
Brasil se tornou um país obcecado pelo controle da “verdade”. Nas
enchentes no Rio Grande, um ministro do governo mandou pedir à PF e
órgãos de Estado “providências” sobre possíveis “crimes de
desinformação”. Mencionou gente reclamando que o “governo não dá atenção
à população” e, quem sabe ainda mais grave, pessoas “condenando a ida
da primeira-dama ao show da Madonna”. Na mesma toada, a AGU reuniu as
plataformas digitais para fixar um “protocolo de combate à
desinformação”. Inútil perguntar o que poderia significar isso. Mas está
lá. Por fim, o governo resolveu criar uma espécie de movimento
anti-fake news. Está lá. Convocação aos cidadãos que queiram receber as
informações “verdadeiras”, do governo, e, mais importante, enviar
“denúncias” contra quem falta com a verdade. Garantindo que tudo será
devidamente “encaminhado para a apuração e responsabilização dos autores
e propagadores de mentiras”.
Quando
li essas coisas todas, confesso, achei que era de algum portal
humorístico. Mas não. No caso do “disque-mentiras”, por um momento
lembrei de minhas leituras das distopias de Orwell, das histórias das
pessoas denunciando vizinhos, e no fim me lembrei do macarthismo. Mas
foi só um flash. Logo me dei conta de que nada disso iria funcionar aqui
pelos trópicos. Imaginem se funcionasse. Milhões de pessoas dedurando
as mentiras dos outros para o governo. E edifício com funcionários do
governo selecionando as que valem ou não abrir um processo. Nossa
inépcia, e uma pitada de senso do absurdo, nos salvará dos dedos-duros,
ao menos nesse caso.
Tudo
isso aí é caldo de galinha. Complicado é a notícia dando conta de que o
governo Lula, em apenas um ano e quatro meses, mandou abrir três vezes
mais processos e pedidos de “investigação” na PF contra jornalistas,
cidadãos e parlamentares do que Bolsonaro
durante seu mandato. Foram 159 pedidos em dezesseis meses, ante 44, em
48 meses. Dez processos mensais, agora, contra coisa de um no governo
anterior. Perto de dois terços são supostos “crimes contra a honra” de
dirigentes do governo, a começar pelo próprio Lula. Na prática,
opiniões. Críticas mais ácidas de opositores do governo. Se o governo
achar que alguém fez uma crítica que “passou do ponto”, põe sua máquina
jurídica para investigar ou processar o sujeito. Mas o que exatamente
“passa do ponto”? Pode ser chamar o presidente de “cabra da peste” ou
dizer que a Janja foi a um show no Rio. Basicamente, é o que dá na telha
dos ocupantes do próprio governo. O problema é a regra: se o atual
governo acha que passa do ponto chamar o presidente de “ladrão” e aciona
a PF, por que um eventual próximo governo de “direita” não faria o
mesmo se alguém chamar o presidente de “genocida”, “nazista” ou coisas
do tipo? Dá para entender a confusão em que estamos nos metendo? Podemos
imaginar a curiosa situação do governo processando um político de
oposição que, logo a seguir, se torne ele mesmo presidente ou ministro.
Teríamos então o governo acionando “seu” próprio dirigente. Indo um
pouco além, se a moda pegar, qualquer governador ou prefeito poderá
reivindicar o mesmo direito. Se achar que alguma crítica atingiu sua
honra, poderá colocar a estrutura jurídica do governo “para cima” do
sujeito, na expressão que escutei de um bom advogado.
O
governo anterior usou esse expediente em alguma escala. Lembro de um
processo contra Guilherme Boulos, por ter feito um post bobinho
comparando Bolsonaro a Luís XIV, com seu fim trágico. E também (meu
favorito) o processo em cima de um sujeito que chamou o presidente de
“pequi roído”. Agora as coisas se tornaram profissionais. Saiu de cena a
finada Lei de Segurança Nacional, mas seu espírito continua aí.
Ganhamos em escala e método. E um método com um evidente problema
republicano. A Advocacia-Geral da União é uma instituição de Estado, não
de governo. Não pode se confundir com a advocacia particular em favor
de interesses privados do eventual governante. Em uma República, um
órgão de Estado representa, em abstrato, os interesses de todos os
cidadãos, sejam eles pró ou contra o governo. Não faz sentido que um
órgão de Estado se dedique à defesa da “pessoa” do ocupante de um cargo
público, seja ele Lula, Bolsonaro ou qualquer outro. É a “impessoalidade”, inscrita na Constituição.
Vamos
nos tornando o país do chilling effect. Do uso de processos judiciais
como forma de intimidar pessoas. A máquina do Estado irradiando medo.
Medo em uma rádio, que pode perder sua concessão, em um youtuber, que
pode ser desmonetizado, em um jornalista, que arrisca perder seu
passaporte. Coisas comuns no Brasil de hoje e que não me parecem um bom
caminho. O STF,
ainda na outra semana, reconheceu como delito o “assédio judicial”
contra jornalistas. A prática de se abrir múltiplos processos,
simultaneamente, de forma a intimidar e causar dano a seu trabalho.
Ótima decisão. Mas e o assédio judicial feito pelo Estado? O uso
político que dirigentes fazem de estruturas públicas para intimidar?
Pode? Acho engraçado escutar pessoas simpáticas a esse estado de coisas.
Elas parecem achar que tudo é circunstancial. Que isso acontecerá
sempre e exclusivamente contra as pessoas e opiniões que elas detestam. É
muito pouco republicano que as pessoas pensem assim. E é também por
isso que instrumentos iliberais de poder jamais deveriam ter espaço em
uma democracia.
Ainda
por estes dias, o Congresso votou pela não criminalização das fake
news. A essência do debate: não se tratava de decidir quem era contrário
ou favorável à desinformação ou à mentira. O ponto era decidir se a
sociedade delegaria ao Estado a prerrogativa de determinar o que é ou
deixa de ser a verdade. Vi naquela decisão o reflexo de tudo o que se
passou no Brasil nesses últimos anos. O enorme ceticismo que se criou em
torno de pessoas que usam o poder para investigar o “pequi ruído”, a
reclamação sobre a demora da chegada de caminhões com mantimentos nas
enchentes. E abrem-se 159 pedidos de “investigação” em dezesseis meses
contra cidadãos. O mesmo que fizeram pessoas punindo um filme que
ninguém viu, uma pergunta sobre o sistema de votação nas redes, ou uma
mera opinião sobre algum figurão. Diria que esse ceticismo vem do fundo
da tradição moderna. A tradição que aprendeu, a ferro e a fogo, que os
“homens não são anjos”, como escreveu Madison, em O Federalista, que os
limites do poder devem ser bastante claros. E que ninguém, como regra,
deve dispor do domínio sobre a verdade. Alguma serenidade para refletir
sobre essas lições não faria mal ao Brasil de hoje.
Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper
Publicado em VEJA de 31 de maio de 2024, edição nº 2895
Postado há 18 hours ago por Orlando Tambosi
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