BLOG ORLANDO TAMBOSI
Eu lia Agatha Christie porque era indiferente pra mim se o autor era homem ou mulher. É uma pergunta que não me ocorria, como não ocorreria a qualquer pessoa que goste de literatura de verdade. Alexandre Soares Silva para a Crusoé:
Vou
dizer o que mais me irrita nessa polêmica da Fuvest excluir todos os
autores homens das listas de leitura obrigatória até 2029: é que as
pessoas que mais exigem cotas disso e daquilo para a literatura são as
que menos se importam com literatura.
Essa
é uma regra universal. Há pessoas que se interessam por coisas e há
pessoas que se interessam pela política das coisas; isto é, há pessoas
que se interessam pelas coisas em si e há pessoas que não se interessam
nada pelas coisas em si, mas se juntam parasiticamente a essas coisas
porque estão interessadas na recepção política dessas coisas.
Enfim,
é isso: há pessoas que se interessam por coisas e há pessoas que se
interessam por política. Há pessoas que se interessam por coisas e há
pessoas que se interessam pelo poder que essas coisas podem dar; e esses
dois tipos não se misturam jamais.
Percebi
isso pela primeira vez na faculdade. Os estudantes que mais se
interessavam por política estudantil eram invariavelmente os que menos
se interessavam pela sua área de estudo. O estudante de letras que
entrava para o ativismo não abria um livro de literatura; o de medicina
que virava uma pequena estrela da política estudantil era capaz de não
saber de que lado ficava o seu fígado.
Isso
envolve todas as esferas de política — isto é, de poder, mesmo que seja
um poder bem pequeno e mesquinho. O homem que vira presidente de um
clube de filatelia é aquele entre os membros do clube que menos se
interessa por filatelia; ele faz isso porque a presidência é a única
posição dentro do clube em que ele não precisa só ficar mexendo com
selos. Agora ele pode falar de contabilidade, locação do espaço, alvará
na prefeitura, regras internas e outras coisas assim, que evidentemente o
interessam mais que a porcaria dos selos.
Esse também é o caso, dez vezes o caso, dessas pessoas fazendo campanha pra que todos leiam mais mulheres.
A
primeira autora que me importou alguma coisa na vida foi Agatha
Christie. E por “autora” quero dizer “a pessoa que escreveu o livro”,
não só “a primeira autora mulher que me importou”. Os livros dela foram
os primeiros que eu queria ler por causa da pessoa que havia escrito;
queria ler tudo que aquela pessoa havia escrito. Com você não foi assim?
Ela foi a iniciação literária de muita gente no século 20 e, espero,
mesmo neste, como J.K. Rowling para outra geração.
E
por que eu queria ler tudo de Agatha Christie? Porque eu era uma
criança tolerante e protofeminista? Não, porque eu estava interessado no
conteúdo dos livros. Tem um crime na história? Tem um detetive? Meus
amigos me falavam que a solução do crime não era completamente imbecil?
E, sobretudo, na capa tinha pegadas de sangue na neve, saindo de uma
janela iluminada onde vemos uma árvore de Natal e pessoas horrorizadas
em volta de um cadáver? Então por que eu precisaria saber detalhes sobre
o autor? Por que saber que o livro foi escrito por um mameluco que acha
o Ryan Gosling “dreamy” me deixaria mais interessado, ou menos
interessado, na porcaria do crime na neve lá?
Claro
que as pessoas que não leem muito não pensam assim, porque pensam na
literatura como um perpétuo contar de sofrimentos: esta pessoa conta o
seu sofrimento, depois aquela conta, em oportunidades mais ou menos
iguais — ou melhor, com muito mais oportunidades para quem acreditamos
que sofreu mais, ou para quem diz mais convincentemente que sofreu mais —
o que, no caso atual da Fuvest, são as mulheres. Porque parece que não
estamos lendo por nenhum outro motivo além de dar aos coitados dos
sofredores do mundo uma oportunidade de serem ouvidos. A visão da
literatura como reunião de condôminos com muitas queixas e
ressentimentos. Uma reunião de alcoólatras anônimos ou de mulheres
espancadas. Um psicodrama desses em que as pessoas se alternam socando
almofadas.
Eu
lia Agatha Christie porque era indiferente pra mim se o autor era homem
ou mulher. É uma pergunta que não me ocorria, como não ocorreria a
qualquer pessoa que goste de literatura de verdade. Ler literatura não é
“dar oportunidade” para alguém porque ela sofreu, não é “dar voz” para
uma senhorinha humilhada que fala baixinho e ninguém deixa falar. Eu não
preciso “dar oportunidade” nenhuma a Jane Austen, Emily Dickinson,
Muriel Spark. Não é um favor que fazemos ao clássico quando lemos o
clássico; a atenção da leitura ou das resenhas não é uma esmola que
estamos dando aos gênios do passado. Essa visão condescendente e
grotesca da literatura tem que acabar.
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