MEDIÇÃO DE TERRA

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sábado, 26 de fevereiro de 2022

A OAB e a crise das liberdades democráticas

 BLOG  ORLANDO  TAMBOSI



Beto Simonetti deixa uma primeira impressão muito ruim ao defender o sacrifício de garantias democráticas como a liberdade de expressão e endossar o abuso e o arbítrio apenas porque dirigidos àqueles de quem se discorda. Editorial da Gazeta do Povo:


O grupo político de Felipe Santa Cruz continuará dando as cartas na Ordem dos Advogados do Brasil, com a eleição de José Alberto Simonetti para a presidência do Conselho Federal da OAB. A eleição é indireta – votam apenas 81 conselheiros – e Beto Simonetti, como é conhecido, teve o apoio de 26 das 27 seccionais estaduais da entidade. Sai de cena a desavença pessoal entre Santa Cruz – cujo pai desapareceu durante a ditadura militar – e o presidente Jair Bolsonaro, mas algumas posturas políticas bastante deletérias permanecem, a julgar pelas declarações do novo presidente em entrevista à revista Veja.

Simonetti, por exemplo, aderiu às narrativas enviesadas sobre a Operação Lava Jato, chegando a dizer que “graças a Deus a Lava Jato foi desmobilizada” e afirmando que ela contribuiu para a quebra de empresas e o consequente aumento do desemprego, culpando o combate à corrupção por algo que foi causado não pela Lava Jato, mas pelo próprio esquema ao qual grandes empreiteiras aderiram para conquistar contratos e ajudar a pilhar empresas estatais. A Lava Jato nada mais fez que colocar às claras a roubalheira e aplicar a lei – que, no caso brasileiro, também responsabiliza as pessoas jurídicas pelos atos de sua cúpula. Pode-se até discutir se as regras implantadas pela Lei Anticorrupção (sancionada, aliás, por Dilma Rousseff) são as mais adequadas ou não, mas é inegável que o erro e a culpa pelas consequências dos crimes descobertos são dos corruptos e dos corruptores, não dos agentes públicos que combatem a ladroagem de colarinho branco. O novo presidente da OAB nacional também foi bastante esquivo ao falar das absurdas decisões do STF que livraram o ex-presidente Lula. “Se o Supremo identificou que ali havia nulidades, acertou se anulou provas inválidas”, disse, ignorando que o STF não “anulou provas”, e sim tirou da cartola uma suspeição sem o menor fundamento jurídico e reverteu todo o seu entendimento anterior sobre a competência para julgar Lula, permitindo que o petista saísse impune.

Talvez mais preocupantes ainda sejam suas declarações em defesa do inquérito das fake news, que está prestes a completar três anos de puro abuso nas mãos do relator Alexandre de Moraes. É verdade que fake news são “repugnantes” e “um câncer da democracia”, mas, ao afirmar que “o Supremo tem obrigação de manter o equilíbrio da democracia e tem como princípio de sua fundação o controle da manutenção do Estado Democrático de Direito”, Simonetti deixa subentendido que tudo isso está sendo cumprido por meio do inquérito das fake news. Ora, no Estado de Direito um mesmo ente não acumula as funções de vítima, investigador e juiz; no Estado de Direito respeita-se o princípio do juiz natural e inquéritos são abertos para apurar fatos concretos, e não agrupamentos genéricos de situações; no Estado de Direito não existe censura contra publicações de imprensa, nem crimes de opinião, nem se viola a imunidade parlamentar. Mas o inquérito das fake news fez tudo isso e mais ainda, ao longo destes três anos. Defendê-lo é defender tudo o que jamais seria aceito em um Estado de Direito.

Como se não bastasse, Simonetti ainda endossou – mesmo que de forma não totalmente explícita, mas nas entrelinhas – a possibilidade de censura do aplicativo Telegram caso ele não se curve às exigências do TSE e suas equivocadas definições de fake news. “Em princípio, falando não só do Telegram ou de qualquer outro aplicativo, deve assumir a culpa quem propaga as fake news”, disse o novo presidente da OAB nacional, borrando completamente as distinções entre as pessoas concretas que espalham mentiras e os meios tecnológicos usados para tal, e deixando a porta aberta para sanções completamente desproporcionais que colocariam o Brasil na companhia de regimes ditatoriais, como já lembramos neste espaço.

A OAB construiu sua história e ganhou o respeito e admiração dos brasileiros graças a décadas de atuação sólida no cenário nacional em defesa não deste ou daquele ator político, mas das liberdades democráticas e da lisura no trato da coisa pública, independentemente do governo de turno. Mas, recentemente, a OAB deixou em segundo plano esta atuação “política” no melhor sentido da palavra para se dedicar à política mais rasteira, a das picuinhas, queimando a credibilidade conquistada com o suor de tantos grandes juristas. O novo presidente do Conselho Federal deixa uma primeira impressão muito ruim ao defender o sacrifício de garantias democráticas como a liberdade de expressão e endossar o abuso e o arbítrio apenas porque dirigidos àqueles de quem se discorda. No momento pelo qual passa o país, é urgente que uma entidade com força moral assuma o protagonismo e seja defensora firme das liberdades democráticas para todos os brasileiros, sem exceção. A OAB pode assumir esse papel, mas para isso precisará recuperar aquele espírito que a animou em momentos-chave da história nacional.
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Uma pergunta aos "cientistas políticos"


Não foram apenas as sondagens produzidas nas últimas semanas que erraram. Foi também, mais geralmente, a percepção que cada um de nós, independentemente das preferências partidárias, tinha do país. A crônica do professor Paulo Tunhas para o Observador:


Não me lembro de outras eleições como estas. Mal foram comunicadas as primeiras sondagens à boca das urnas, todas as expectativas foram invertidas: o PS estava muito próximo da maioria absoluta que acabou por obter. E quando digo “todas as expectativas” quero mesmo dizer “todas as expectativas”: as dos votantes, sem distinção de partidos, e as dos votados, também sem distinção dos partidos. Claro que em muita gente havia o desejo que o PS obtivesse maioria absoluta. Mas o desejo é apenas um ingrediente de uma expectativa. Para que a expectativa se forme é necessário que contemos, além do desejo, com várias condições que apontem para a verosimilhança da sua satisfação. E ninguém contava que tantas condições se reunissem assim, conjuntamente conspirando para a maioria absoluta.

Não foram apenas as sondagens produzidas nas últimas semanas que erraram, o que acontece frequentemente. Foi, mais geralmente, a percepção que cada um de nós, independentemente das preferências partidárias, tinha do país que se revelou profundamente inadequada. Inadequada a um tal grau que as expectativas por essa percepção engendradas foram frustradas logo às primeiras notícias. E isso, repito, tanto para aqueles para quem a maioria absoluta do PS foi uma dádiva dos céus como para aqueles para os quais foi um duche gelado. Resumindo. A surpresa não deve ter sido muito menor para António Costa do que para Rui Rio.

O que é particularmente interessante em tudo isto é mesmo a dimensão da inadequação da percepção comum à realidade. Não sou “cientista político” e nem sequer sou dotado de grande imaginação para conceber “cenários”. De facto, perco imediatamente o pé quando me pedem para os imaginar. Não é só ficar paralisado pelo medo de errar: é que me falta por inteiro a capacidade para os ver à minha frente e para os ponderar. Mas gostava a sério que os inúmeros “cientistas políticos” que para aí andam, que são muito entendidos nestas coisas, nos explicassem como uma tão grande inadequação entre a percepção colectiva da realidade política e a realidade política propriamente dita pode ter tido lugar.

Porque as explicações que nos foram oferecidas ficam muito longe de nos satisfazer no capítulo. Elas, no fundo, colocam-se ao nível daquilo que qualquer pessoa minimamente atenta ao que se passava podia, sem dificuldade, conceber. Por exemplo, que o PSD, tendo laborado, sob Rio, no erro – um entre muitos – de se apresentar como um partido de centro-esquerda, tenha afastado de si um grande número de eleitores potenciais. Isso explica, sem dúvida, a derrota do PSD, que era verosímil, por mais que a sua vitória tenha parecido, a certa altura, igualmente possível. E o mesmo se pode dizer do “voto útil” à esquerda. Tal ajuda a perceber a vitória do PS e a derrota do PSD, não a sua escala e a conquista da maioria absoluta por parte do PS. Esta era, à partida, declaradamente inverosímil. Para todos, repito mais uma vez.

Como não é lícito invocar nestas matérias o puro acaso, é preciso buscar uma razão qualquer que dê satisfatoriamente conta da inadequação entre a percepção comum e a realidade. O que convida a uma certa especulação. Uma especulação sobre as vítimas do costume: os portugueses. Como os portugueses, com as suas singularidades todas, são muito parecidos com os outros povos, é preciso cuidado com estas coisas. Não tenho conhecimento de qualquer característica nacional que nos incline fatalmente para uma irracionalidade que frustre sistematicamente qualquer previsão racional sobre o nosso comportamento político. Deve, portanto, haver alguma racionalidade oculta na realidade que escapou à nossa percepção e que frustrou as nossas expectativas.

“Racionalidade” significa aqui, modestamente, a boa consequência lógica de um acto por relação a um desejo. Ora, conhecido o acto – o voto na maioria absoluta do PS -, é preciso perguntar qual o desejo. E receio bem que a natureza desse desejo seja, no fundo, simples de explicar. É, banalmente, o desejo que nada mude, porque toda a mudança é vista como inevitavelmente mudança para o pior. A maioria dos portugueses não quer mudar nada. A mudança inspira medo a uma sociedade frágil e insegura que não confia na sua própria força. Não é uma explicação muito sofisticada, eu sei, mas, na sua banalidade, é verosímil. E, à sua maneira, dá conta de um comportamento que apresenta alguma racionalidade. Se eu me sinto frágil e inseguro, quero tudo menos meter-me em aventuras para as quais não julgo ter forças suficientes.

É claro que caberia ao PSD persuadir os portugueses que a mudança é desejável e que os portugueses teriam força para a levar a cabo. Mas Rui Rio foi feito para tudo menos para isso. Em tudo o que ele disse e fez não havia a mínima indicação nesse sentido. Mesmo ficando-nos pelos vários debates, digam-me onde é que ele exprimiu, com um mínimo de convicção, qualquer desejo de mudança? Prometeu apenas que faria melhor do que Costa – e provavelmente faria. Mas o “melhor” era aqui uma continuação do mesmo. Eram uns ajustes aqui, uns consertos ali. Porquê correr o risco, o pavoroso risco, de mudar? Nada do que disse inspirava o ânimo para a mudança, sobretudo num país que parece radicalmente avesso a ela. Jogou no mesmo e teve a desagradável surpresa de recolher o mesmo na dose forte da maioria absoluta do PS.

Estou obviamente a especular ao oferecer esta explicação um pouco selvagem para a radical inadequação entre as expectativas maciças da percepção comum e a realidade que se veio a verificar, inadequação essa que foi o facto mais singular destas eleições. O que eu gostaria mesmo era de ter uma explicação a sério dos muitos politólogos que por aí há. Por isso, o que escrevi antes sobre o medo de mudar como factor determinante oculto deste comportamento eleitoral, mais do que uma tentativa de explicação, deve ser entendido como uma pergunta que lhes é dirigida: como é que nos conseguimos colectivamente enganar tanto?
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Patacoada sobre o Holocausto: Whoopi de castigo.


A atriz e apresentadora pediu desculpas por dizer que o genocídio dos judeus não teve motivação racial, mas está fora do ar por duas semanas. Vilma Gryzinki:


Quem erra e reconhece o erro deve sofrer castigo? Esta é a questão envolvendo Whoopi Goldberg, que apresenta diariamente um programa matinal de sucesso, The View, na televisão ABC.

“Embora Whoopi tenha se desculpado, eu pedi a ela que tire um tempo para refletir e aprender sobre o impacto de suas comentários”, informou a presidente da ABC News, Kim Godwin.

A questão envolve o assunto mais explosivo que existe no mundo atual, raça (detalhe: Kim Godwin também é negra, o que torna a punição da atriz um pouco menos atribulada).

O erro quase inacreditável de Whoopi Goldberg foi dizer, na habitual discussão com as outras quatro participantes do programa, que o genocídio dos judeus durante o nazismo não foi por questão de raça, mas sim da “desumanidade do homem contra o homem”.

Ela argumentou que alemães e judeus eram “dois grupos de pessoas brancas” e deu a entender que somente negros podem ser vítimas de preconceito racial. E continuou insistindo nisso ao dar uma entrevista para o apresentador Stephen Colbert com seu pedido de desculpas.

O exemplo que escolheu: se estivesse com uma amiga judia e alguém da Ku Klux Klan se aproximasse, ela, Whoopi, teria que fugir, mas a acompanhante poderia “escolher” ficar. “Porque não dá para dizer quem é judeu”, elaborou.

A quantidade de ignorância é quase inacreditável, considerando-se que Whoopi pode ter acesso às informações mais básicas sobre o nazismo e os supremacistas brancos americanos, mas preferiu viver num mundo em que só a sua experiência conta.

Talvez o autocentrismo americano ajude a explicar como uma comunicadora em posição tão destacada, ganhando vários milhões de dólares por ano para falar a um público fiel todos os dias, ignore que o nazismo tem como coluna fundamental a superioridade racial dos “arianos” e a inferioridade dos judeus (ciganos, eslavos e alemães portadores de deficiência física ou mental entravam também na lista dos que deveriam ser eliminados para o aperfeiçoamento da raça pura).

As leis raciais na Alemanha nazista têm um histórico perfeitamente documentado. Em 1935, as leis de Nuremberg cassaram a cidadania dos judeus alemães e proibiram o casamento ou relações sexuais entre alemães e judeus. Foi o início da perseguição oficial, lavrada em lei. Progressivamente excluídos de atividades públicas, inclusive do trabalho, os judeus alemães que não conseguiram escapar do país percorreram, com apenas algum atraso, o roteiro de perseguições reservado aos judeus dos países invadidos a partir de 1939, desde o uso da estrela de David na roupa até o envio para campos de trabalho forçado e, finalmente, os campos de extermínio sistemático e industrial.

A importância doutrinária para o nazismo da pureza racial ajuda a entender como o genocídio se prolongou até os últimos dias da guerra, quando os alemães já haviam perdido e recuavam em massa para fugir do avanço das forças soviéticas.

O horror de uma guerra que matou diretamente 50 milhões de pessoas e do Holocausto obscureceu até capítulos hediondos que demonstram a obsessão racial dos nazistas, como o sequestro de crianças em países ocupados, especialmente na Polônia.

Crianças que tinham traços “arianos” eram tiradas das famílias e mandadas para a Alemanha, onde passavam por testes para “comprovar” sua estirpe racial – os nazistas achavam que descendiam de populações alemãs nativas dos países ocupados. Só os exames de traços físicos eram doze.

Se não passassem, iam para o trabalho forçado ou experiências médicas. As aprovadas, eram adotadas e criadas para esquecer a origem.

Calcula-se que entre 20 mil e 200 mil crianças foram sequestradas na Polônia nesse programa. O livro A Escolha de Sofia é baseado nessa monstruosidade. A personagem principal vive o trauma inenarrável de ter de escolher qual, do casal de filhos, salvaria e qual mandaria para a morte – os dois sofreriam este destino se ela se recusasse a dizer quem livraria. A polonesa Sofia acaba escolhendo o menino, por achar que ele teria mais chances de sobreviver se fosse encaminhado para o programa de “germanização”.

O livro virou filme, valendo o Oscar de 1983 para Meryl Streep.

Whoopi Goldberg, que também ganhou o Oscar – em 1991, pela impagável vidente de Ghost -, podia pelo menos saber de algo que faz parte de seu universo.

O caso da atriz precedeu em um dia outra reviravolta no mundo da televisão. Jeff Zucker pediu demissão como presidente da CNN por não ter revelado, como estabelece o código da empresa, o relacionamento com sua principal executiva, Allison Gollust. Ela continua na empresa.

Pimenta extra: Zucker teve que admitir o caso porque o apresentador Chris Cuomo contou tudo na investigação interna relacionada ao processo trabalhista que abriu contra a CNN. Ele foi demitido por colaborar com o irmão, Andrew Cuomo, na procura de dados comprometedores sobre as mulheres que denunciavam o governador de Nova York por assédio, o que acabou levando à sua renúncia.

Sobre o mérito da suspensão de Whoopi: um erro por ignorância e não má fé fica zerado com pedido de desculpas.

Punir Whoopi Goldberg, nascida Caryn Elaine Johnson (o sobrenome artístico, tão judeu, foi escolhido ao acaso), fica parecendo exagero. E ainda a coloca na posição de vítima – os preconceituosos de sempre já estão dizendo de quem.
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Moro no centro do ringue: o temor dos três Poderes.


Manipulam informações, usam de manobras jurídicas antiéticas, quando não ilegais, procuram desmoralizar Moro e os que o defendem. Merval Pereira para O Globo:


O ex-juiz Sergio Moro não consegue chegar a dois dígitos nas pesquisas eleitorais para presidente da República, mas provoca reações raivosas em seus adversários. É “canalha”, segundo Lula; “ladrão e desonesto”, para Ciro Gomes, e “traidor”, para Bolsonaro. Mobiliza altas rodas do Judiciário, e centenas de advogados criminalistas reunidos na guilda autointitulada “Prerrogativas”, que querem vê-lo destruído moralmente e, se possível, atrás das mesmas grades em que colocou o ex-presidente Lula.

Tentaram de tudo. A ponto de um ministro do Tribunal de Contas da União (TCU), Bruno Dantas, ter pedido uma investigação sobre os ganhos auferidos por Moro no ano em que trabalhou na consultoria internacional Alvarez & Marsal. Um processo totalmente irregular, que teve um procurador do Ministério Público escolhido a dedo, com objeto alheio à competência do TCU, pois tratava-se de uma relação privada entre o ex-juiz e a consultoria, sem envolver dinheiro público.

O caso terminou melancolicamente para Dantas, surpreendido pelo pedido, do próprio procurador que escolhera, para arquivar o processo, por falta de objeto. Dantas é muito ligado ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e ao senador Renan Calheiros, dois dos mais ferrenhos adversários de Moro.

Mais ridículo ainda, também uma CPI foi arquitetada pelo PT para investigar a mesma coisa, uma suposta mirabolante conexão entre as empreiteiras que foram atingidas pela Operação Lava-Jato e os contratos fechados por elas com a Alvarez & Marsal na recuperação judicial. Moro, ao “quebrar” as empreiteiras brasileiras, teria aumentado os lucros da consultoria internacional, e estaria sendo recompensado agora com um contrato fajuto, que seria apenas “propina” pelos favores do ex-juiz. A coisa era tão rocambolesca, e tão claramente vingativa, que não foi adiante. Ninguém quer lembrar que as empreiteiras quebraram porque envolveram-se em esquemas de licitações fraudulentos, confessados amplamente.

Fazem com Moro o que o acusam de ter feito contra Lula. Manipulam informações, usam de manobras jurídicas antiéticas, quando não ilegais, procuram desmoralizar Moro e os que o defendem. O advogado de Lula, Cristiano Zanin, quer fazer crer que ele foi, sim, inocentado pela Justiça, com uma interpretação jurídica distorcida: “A Constituição considera todos inocentes, a menos que haja condenação transitada em julgado”. Como se os processos não tivessem existido, e nem as confirmações das condenações pelo TRF-4 e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Só é considerado inocente pela Justiça o réu absolvido por falta de provas, ou porque ficou provado que o crime não aconteceu, ou que ele não foi o autor do crime. No caso de Lula, seus processos foram transferidos de jurisdição porque o Supremo considerou que a Vara de Curitiba não era competente, e um deles foi anulado por Moro ter sido considerado um juiz parcial.

Em decorrência, vários deles estão sendo arquivados, por prescrição, o que significa que não há mais tempo hábil para o Estado processar o réu. Por que um sujeito que é “insignificante e não tem futuro na política”, como disse recentemente Lula, torna-se o centro da campanha presidencial, foco dos ataques dos candidatos mais bem colocados?

Talvez por verem nele um potencial de votos que ainda não se revelou nas pesquisas de opinião. E talvez nem se revele, diante de uma possibilidade concreta de os eleitores terem que votar contra alguém, para impedir o outro de ganhar. Provavelmente, durante a campanha, quando começarem os programas eleitorais no rádio e televisão, e os debates entre os candidatos, os temas mais prejudiciais a Lula, como os casos de corrupção acontecidos em seu governo, e a assombração da esquerda manipulada eleitoralmente, possam estancar sua arrancada rumo à Presidência. Moro terá também que enfrentar a acusação de que perseguiu Lula com intenções políticas.

Lula já ensaia não comparecer aos debates, criticando o formato em que são feitos. Bolsonaro também não é muito chegado a um debate, prefere falar sozinho. Moro, por sua vez, tem dificuldades para fechar acordos políticos, muito por suas qualidades, mas também por inexperiência no jogo eleitoral. Até abril, prazo fatal para definições partidárias sobre as candidaturas, o quadro ficará mais claro.
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quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

'Woke racism', uma nova religião.


Em seu novo livro, Woke Racism, o professor e linguista John McWhorter argumenta que esse “despertar” é uma religião que, longe de se opor ao racismo, tende a reforçá-lo. Artigo de Elan Journo:

“Supremacia branca” define a nossa sociedade. Na verdade, a fundação de nossa nação foi em 1619, com a chegada do primeiro navio que transportava escravos africanos. Se você é “branco”, verifique seu “privilégio”. O simples fato de resultados distintos nas escolas é uma prova óbvia de racismo. Negar que você é conivente com isso só prova que você é racista.
Essas ideias são cada vez mais difundidas em salas de aula, auditórios, instituições culturais e locais de trabalho. Não se alinhe ao discurso “desperto” e será perseguido, intimidado ou despedido.
Mas os “despertos” acreditam em quê?
Começando com pais irados em reuniões escolares, passando por protestos vulgares e algumas vozes conservadoras, você ouvirá que os “despertos” buscam minar a sociedade americana, inspirados pela Teoria Crítica da Raça. Alguns políticos inclusive decidiram bani-la das escolas. Negligenciando essa reação, algumas vozes progressistas insistem que a Teoria Crítica da Raça é apenas uma obscura especialização acadêmica sem ligação direta com o que é ensinado em sala de aula. O que os “despertos” buscam, na verdade, é um acerto de contas a nível nacional com o racismo.

Em meio a essa confusão, John McWhorter oferece uma explicação penetrante. McWhorter, que leciona na Universidade de Columbia, é um intelectual dissidente em questões raciais. De forma apaixonada e convincente, ele discorda da ideia complacente de que o fenômeno do “despertar” é um impulso sensato de combate ao racismo, afirmando que seu objetivo é remodelar politicamente os Estados Unidos, apropriando-se da Teoria Crítica da Raça. Mas para compreender sua crueldade inquisitorial, seu impulso condenatório e seu poderoso domínio sobre a mente de tantas pessoas, precisamos ver esse fenômeno sob um ângulo diferente. Em seu novo livro, Woke Racism, McWhorter argumenta que esse “despertar” é uma religião que, longe de se opor ao racismo, tende a reforçá-lo.

Uma nova religião

McWhorter batiza os seguidores dessa nova religião como “eleitos”, um termo que evoca não apenas fanatismo, mas também uma “certa presunção” de serem “portadores de sabedoria”. Essa religião, ele aponta, exibe características semelhantes às religiões já existentes e, na maioria das vezes, as semelhanças que ele destaca são pertinentes. Há um suposto pecado original: “privilégio branco”. Há uma linha de pensamento apocalíptico: o presente é um esgoto, perdição; o progresso nas questões raciais depende de um juízo final. Há também uma caça aos hereges, considerados não apenas errados, mas moralmente corruptos. Assim como os católicos medievais defendiam “perseguir judeus e muçulmanos”, os inquisidores de nosso tempo “abraçam exatamente o mesmo tipo de missão, só mudam o alvo”.


Os “despertos” não têm uma figura divina, mas McWhorter observa que nem toda religião precisa de uma. Chamando a atenção para a mentalidade dos seguidores, ele observa uma semelhança com as religiões abraâmicas: “Não se trata de se submeter a UM Deus. É preciso mostrar-se descrente para não ser considerado submisso”. Seguidores fervorosos da nova religião do “despertar” não sustentam crenças baseadas em fatos, opondo-se fervorosamente a eles. Os despertos também não se deixam abalar por contra-evidências.

Considere a alegação de que, na educação, as diferenças nas notas entre alunos brancos e negros evidências inquestionáveis de racismo. McWhorter mostra que isso é implausível, pois não leva em conta o papel de outros fatores causais. Entre eles está a ideia perniciosa de que ser bom na escola é trair a própria raça. Essa ideia, sugere McWhorter de forma plausível, provavelmente se originou em uma época em que os alunos negros sofriam racismo por parte dos professores e tinham de suportar a rejeição daqueles que apoiavam a segregação. Entretanto, mesmo com esse preconceito diminuindo muito ao longo do tempo, a ideia criou raízes na mente de muitos americanos, incluindo americanos negros.

Sentimentos acima dos fatos e da lógica

O desprezo pela lógica é uma característica da religião do “despertar”. McWhorter justapõe algumas de suas injunções conflitantes (homilias?): “Os negros não podem ser responsabilizados por tudo que todo negro faz”, mas, ao mesmo tempo, “todos os brancos devem reconhecer sua cumplicidade pessoal na perfídia da ‘brancura’ ao longo da história.” Temos o dever de “mostrar interesse no multiculturalismo”, mas, ao mesmo tempo, “não é culturalmente apropriado. O que não faz parte de sua cultura não é para você, e você não pode tentar vivenciá-la, ‘apropriando-se dela’”. Quando os negros dizem que você os insultou, “peça desculpas com profunda sinceridade e culpa”, mas, ao mesmo tempo, “não coloque os negros numa posição em que espera que eles o perdoem. Eles já passaram por coisas demais”.

“Religião”, escreve ele, “não tem lugar na sala de aula, nos corredores das universidades, em nossos códigos de ética, muito menos em decretar como todos os membros da sociedade devem se expressar, e quase todos nós espontaneamente entendemos isso e vemos qualquer incompreensão dessa premissa como retrógrada.”

Para os adeptos desta perspectiva, o fato de que esses princípios “cancelam um ao outro é considerado trivial”. Mas o fato de servirem “ao seu verdadeiro propósito de revelar as pessoas como fanáticos é fundamental – sacrossanto, por assim dizer”.

O medo e a culpa são fundamentais para entender como os “despertos” evangelizam. Eles têm sucesso, ele acredita, por intimidação moral e ao aterrorizar as pessoas com a ameaça de serem rotuladas de racistas: “Nós nos tornamos uma nação de pessoas inteligentes que atestam que ‘entenderam o recado’, tremendo de medo”.

Ironicamente, porém, este termo encontra-se terrivelmente corrompido por causa do imenso progresso que vimos no racismo, um fato que os “despertos” negam. Quando a intolerância e o preconceito eram muito mais comuns e aceitos que hoje, essa acusação não teria sido nem de longe socialmente letal, muito menos representaria o fim de uma carreira. O progresso tem sido “tão vívido nos últimos 50 anos que um segregacionista da velha-guarda transportado para os Estados Unidos atual, mesmo no Sul, teria dificuldade em não vomitar com o que visse”. Para os “eleitos”, “a vida dos negros é importante, mas a transformação sociopolítica profunda na forma como os negros são percebidos, não”.

O que motiva o “eleito”?

De onde surgiu essa religião e o que motiva seus adeptos? McWhorter rastreia suas raízes de volta à Teoria Crítica da Raça. Discutindo brevemente essa questão, ele ilustra a influência da TCR no comportamento dos “eleitos”, por exemplo, na elevação das “narrativas” sobre os fatos. O que motiva os crentes dessa religião? McWhorter acredita que não se trata principalmente de “dinheiro ou poder, mas puro propósito, no sentido de sentir que você é importante e que sua vida tem um fim significativo”.

Mas os “despertos” variam em seu nível de comprometimento, e esse fato pode explicar os muitos adeptos conformistas que seguem a multidão. E quanto aos mais zelosos, que sentem uma necessidade contínua de expulsar os hereges e, assim, reafirmar sua fidelidade aos olhos de seus companheiros de seita? E os líderes intelectuais? Uma objeção aqui é que McWhorter é excessivamente caridoso com as motivações dos “despertos”, especialmente aqueles que exibem um interesse pessoal em negar a realidade do progresso e desinteresse em soluções viáveis.

Tal indiferença ultraja McWhorter. Nesse ponto, e em outros lugares, sua indignação fica estampada. Ele se revolta contra a noção dos “eleitos” de que, se os negros quiserem progredir, o racismo deve ser completa e totalmente erradicado. Embora totalmente ciente da persistência do racismo, ele rejeita a visão de que “nosso foco principal deve sempre ser a eliminação dos vestígios do preconceito racista”, o que implica que “esse viés é um obstáculo conclusivo para o sucesso dos negros”. Esse é um argumento inusitado para qualquer outro grupo, e para os negros implica que:

Nós, e somente nós, exigimos uma vasta transformação no procedimento psicossocial e distributivo no que é, apesar de suas falhas, um experimento democrático funcional em que o racismo é proibido em um grau desconhecido na história humana até 50 anos atrás, e em um grau que teria sido considerado ficção científica 30 anos atrás.

Essa ideia retrata os negros como crianças com deficiência mental e espiritual…

McWhorter mostra que, apesar de se apresentar como inimiga do racismo, essa postura prejudica os negros e ofusca os problemas reais. A perspectiva “desperta” fecha os olhos “para crianças negras sendo atacadas por outras na escola”; “para a loucura da ideia de ‘identidade’ negra como tudo sobre o que os brancos pensam, e não sobre o que os próprios negros pensam”; “aos lapsos no trabalho dos intelectuais negros, porque os negros carecem do privilégio dos brancos”.

A conclusão condenatória de McWhorter é que a religião “eleita” é racista, não apenas em sua concepção da identidade negra, mas também em sua condescendência para com os negros.

Essa conclusão é bem defendida, mas há algumas questões controversas que McWhorter deixa de lado ou só aborda artificialmente. Entre elas está o “privilégio branco”, que McWhorter acredita ser real em certo sentido. No entanto, ele reforça que o importante são nossas respostas a ele. A ideia de “racismo sistêmico” é outro termo que valeria a pena desdobrar mais, dada sua relevância. Investigar mais essas questões fortaleceria o argumento do livro.

Deixando a balcanização de lado

O fenômeno do “despertar”, no relato de McWhorter, é uma espécie de força atávica: ele nos leva “de volta às categorizações raciais balcanizadas e artificiais que todos pensamos que queríamos superar.”

No entanto, pergunte por que não devemos mais superá-los e os eleitos – espere – rotulam-no como supremacista branco. Todo o foco do Iluminismo no individualismo, toda a permissão do modernismo para que as pessoas sejam elas mesmas em vez de ficarem presas a classificações predefinidas, esfacela-se diante dessa ideia de que ser qualquer coisa menos branco requer obsessão com o fato de que você não é branco e diminuído pela possibilidade de eles não o verem em sua totalidade.

Ao enfrentar os “eleitos”, aconselha McWhorter, não permita ser intimidado moralmente: enfrente-os, pare de tratá-los como o normal.

A demanda dos “despertos” de “acabar com o racismo”, argumenta McWhorter, é uma “versão infantil de progresso “. O racismo, escreve ele, não é apenas preconceito, mas também atitudes e políticas persistentes: “Algo tão multiforme e atemporal deve ser restringido tanto quanto possível, mas é impossível simplesmente eliminá-lo. Mais especificamente, não é necessário fazer isso.” O que deveria ser feito? McWhorter propõe três reformas de políticas que acredita serem de alto nível, mas modestas o suficiente para serem implementadas: acabar com a “guerra às drogas”; ensinar adequadamente todos os alunos a ler; e tornar o treinamento vocacional mais acessível, desfazendo a ideia de que todos devem ir para uma faculdade de quatro anos. Ele explica como isso poderia abrir caminhos para que os indivíduos levassem uma vida produtiva e gratificante, e mesmo se alguém discordar dele, é claro que essas recomendações evidenciam uma preocupação genuína com o progresso.

Inabalável em sua análise, o livro esclarece o fenômeno do “despertar” que nos rodeia.

Publicado originalmente em New Ideal.

Traduzido por Hellen Rose.
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